Mulheres no Itamaraty: a luta feminina pela igualdade de gênero em uma instituição tradicionalmente masculina

Julia Coimbra

voluntária da Elas

18/10/2023

O Brasil possui uma forte tradição diplomática, que conduz a política externa do país e o coloca como um dos protagonistas em debates relacionados ao meio ambiente e aos direitos humanos. O país despontou como uma potência diplomática depois do fim da Ditadura Militar, quando passou a adotar uma posição progressista em relação a esses debates.

Criado em 1823, o Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty, é o órgão do poder executivo responsável pela condução da política externa brasileira e é composto por diplomatas, oficiais de chancelaria e assistentes de chancelaria.

A carreira diplomática é a de maior prestígio e poder dentro da diplomacia, pois é o diplomata o responsável por representar os interesses de seu país frente aos demais. Por se tratar de uma carreira de poder, prestígio, status, glamour e renome, a diplomacia ainda é vista mundialmente como “uma carreira para homens”, seguindo a tradição patriarcal de deixar as mulheres à margem dos cargos de poder.

No Brasil, o Itamaraty segue sendo um ambiente bastante elitista, sexista e patriarcal. Ainda que tenhamos feitos históricos realizados por mulheres diplomatas, elas seguem relegadas e são os homens os protagonistas. São eles que ganham destaque, melhores postos, promoções e maior visibilidade dentro do MRE.

Recentemente, o Itamaraty chegou a admitir que existe um cenário de sub-representação crônica de mulheres no Ministério. Essa situação não reflete a diversidade, tampouco a composição do país, de maioria feminina.

O histórico das mulheres no Itamaraty 

O ingresso na carreira diplomática se dá através do Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) do Instituto Rio Branco, considerado o mais concorrido do Brasil. Além da dificuldade e competitividade da prova, ao longo do tempo as mulheres também tiveram que enfrentar muitos preconceitos e até mesmo proibições legais para finalmente conseguirem ingressar no Itamaraty.

Foi apenas em 1918 que Maria José de Castro Rabello Mendes se tornou não apenas a primeira diplomata, mas também a primeira mulher a prestar um concurso público no Brasil. Aprovada em primeiro lugar, Maria José só conseguiu participar do concurso após recorrer judicialmente, pois seu pedido para fazer a prova havia sido negado pelo então ministro das relações exteriores.

Já em 1938, houve a unificação da carreira consular com a carreira diplomática, além da proibição do ingresso de mulheres na carreira. Dessa forma, as mulheres ficaram impedidas de se tornarem diplomatas por 16 anos, já que a proibição foi extinta apenas em 1954.

Logo em seguida, em 1956, Odete de Carvalho e Souza se tornou a primeira embaixadora de carreira do mundo. No entanto, enquanto os colegas de Odete eram chamados de embaixadores, ela era conhecida apenas como “Dona Odete”. Por anos houve resistência em denominar uma mulher como embaixadora. Além disso, esse feito inédito na diplomacia mundial nunca foi enaltecido ou divulgado pelo Itamaraty.

O que se percebe, portanto, é que ainda que a proibição do ingresso de mulheres na carreira diplomática tenha sido extinta há mais de 60 anos, na prática o Itamaraty segue sendo uma instituição extremamente elitizada e sexista, que não investe em representatividade e paridade de gênero. Consequentemente, em pleno 2023, a inserção de mulheres no MRE segue lenta.

Atualmente, as mulheres compõem cerca de 23% dos quadros do Itamaraty. Essa proporção diminui progressivamente de acordo com a hierarquia dos postos, ou seja, quanto mais importante o cargo, menos mulheres o ocupam.

Ainda que nos últimos anos as mulheres tenham finalmente começado a ocupar postos importantes, apenas 16% dos postos internacionais são chefiados por mulheres (apenas 34 dos 213 postos diplomáticos). No tocante às embaixadas, especificamente, apenas 18 das 133 são comandadas por uma mulher (13,5%).

Ademais, vale ressaltar que o Brasil é o único país das Américas que nunca teve uma mulher como chanceler. Por isso, não há como negar que a diplomacia tem uma hierarquia e distribuição de poder baseados em gênero.

Desafios enfrentados pelas mulheres para ingressarem na carreira e obstáculos internos do Itamaraty 

O Itamaraty, por ser uma instituição tradicionalmente masculina e sexista, continua a ser um espaço de poder no qual as mulheres enfrentam restrições significativas para ocupar cargos de destaque. Um dos principais desafios que as mulheres enfrentam para ingressar na carreira é o próprio processo do CACD. 

O concurso, além de ser altamente competitivo, possui três fases distintas, o que exige um grande investimento de tempo e recursos financeiros para que os candidatos possam se preparar adequadamente e obter aprovação. Portanto, a prova em si já constitui uma barreira econômica para as mulheres, especialmente as mais afetadas pela pobreza no Brasil, incluindo as mulheres negras.

Observando que as mulheres compõem cerca de 52% da população e que as mulheres negras representam 28% da população, torna-se evidente que a desigualdade social é uma barreira significativa para a representatividade feminina no Itamaraty. Assim, se uma candidata não pertence à classe média alta e não dispõe de apoio financeiro da família, suas chances de estudar em tempo integral para o concurso, em vez de ter que trabalhar para sobreviver, diminuem drasticamente. Isso contribui para a perpetuação da elitização da carreira.

Além disso, uma vez que uma mulher consegue ingressar no Itamaraty, ela ainda enfrenta as estruturas patriarcais da instituição, onde as promoções são muitas vezes baseadas em gênero. As mulheres diplomatas continuam a ocupar cargos de menor importância, enfrentam discriminação de gênero e têm mais dificuldades em progredir na carreira, o que também pode incluir situações de discriminação e violência de gênero.

As mulheres também enfrentam desigualdades na divulgação midiática, já que, apesar das realizações históricas das diplomatas brasileiras, o Itamaraty tem um histórico de não comemorar suas conquistas e relegar essas mulheres ao segundo plano. Os diplomatas mais conhecidos e enaltecidos são, invariavelmente, homens.

Essa falta de divulgação e reconhecimento de figuras femininas na diplomacia contribui para que menos mulheres sonhem com essa carreira e, consequentemente, se inscrevam no concurso. O que se percebe é que o ideal de que o diplomata é um homem branco, rico, heterossexual, elegante e instruído em idiomas, política e cultura ainda é perpetuado na sociedade.

Ademais, por se tratar de uma carreira que é construída fora do país, o desejo de ter filhos e se casar também constitui uma barreira para o ingresso das mulheres que tenham esse sonho. Porque a realidade é que o Itamaraty e a progressão de carreira do diplomata foram desenhados para homens, sem considerar as necessidades que uma mulher grávida e com filhos pode ter. Viagens longas, diversas trocas de países e distância da família podem ser fatores que vão contribuir para que a diplomata precise lidar com uma dupla jornada, que nem sempre é enfrentada pelos homens – pois ainda se perpetua a ideia patriarcal de que a mulher é a responsável pelo casamento e pelos filhos. 

Os avanços e as mudanças necessárias 

Ainda que as mulheres sigam sendo severamente sub-representadas e que precisem enfrentar obstáculos desproporcionais para seu ingresso na carreira, avanços foram conquistados ao longo, principalmente, dos últimos anos. 

Recentemente as mulheres passaram a ser nomeadas para postos importantes e, em 2023, a primeira mulher, Maria Luiza Viotti, foi nomeada para a embaixada do Brasil em Washington, nos Estados Unidos. Além de Viotti, Claudia Buzzi também chefia uma embaixada de alto patamar, a da Suíça. Outras três mulheres comandam missões de grande prestígio: Paula Souza (Unesco), Claudia Santos (Agência Internacional de Energia Atômica) e Carla Carneiro (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura). 

No mais, pela primeira vez na história uma mulher foi nomeada para a Secretaria-Geral do Itamaraty. Maria Laura da Rocha é a nova secretária-geral, o segundo cargo mais importante na hierarquia do Itamaraty. 

Além das recentes nomeações, alguns dos avanços conquistados pelas diplomatas foram a igualdade salarial, o reconhecimento de uniões LGBTQIAPN+ e a criação de uma sala de amamentação no Palácio do Itamaraty. 

Outra conquista recente foi a criação da Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras (AMDB), formada por mulheres diplomatas brasileiras que buscam a criação de um Itamaraty “mais igualitário e representativo”. A associação busca a promoção de medidas que contribuam com a ascensão das mulheres na diplomacia e luta por mudanças institucionais que promovam a igualdade de gênero e o empoderamento feminino. 

Aliás, o Grupo Mulheres Diplomatas, percursor da AMDB, foi responsável pela elaboração em 2018 do documentário ”Exteriores, Mulheres Brasileiras na Diplomacia”, que relata os desafios e a vida da mulher diplomata no Itamaraty. O documentário imperdível segue disponível para acesso em plataformas como o Youtube.

Cabe ressaltar, ainda, que em 2022, o CACD registrou o recorde de 38% de mulheres aprovadas no concurso. 

E o futuro?

Em pleno 2023, é absolutamente crucial que as mulheres desempenhem um papel ativo na formulação de políticas públicas e na construção da política externa brasileira. 

Isso pode ser alcançado através de diversas medidas, como a implementação de cotas, incentivos para que mais mulheres se inscrevam no CACD, a instituição de políticas de promoção baseadas no mérito, e o aumento da visibilidade das conquistas das mulheres na diplomacia. Além disso, fortalecer a Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) é fundamental para apoiar as mulheres na carreira diplomática.

As mulheres não podem mais ser deixadas de lado em um ambiente de poder, em uma instituição que reluta em se modernizar. É importante questionar por que, até agora, o Brasil não teve uma mulher como chanceler. Por que as mulheres ainda enfrentam barreiras para compor delegações em organismos internacionais?

A diversidade e a representatividade são fundamentais, pois trazem novas perspectivas, entendimentos e abordagens para a solução de problemas. A capacidade de inovação e a habilidade de contribuir para negociações internacionais são recursos valiosos que podem fortalecer a diplomacia brasileira e torná-la mais progressista. A inclusão das mulheres não é apenas uma questão de justiça, mas também uma estratégia eficaz para o fortalecimento da diplomacia e a promoção dos interesses do Brasil no cenário internacional.

É necessário que a instituição se renove, que se torne mais inclusiva e dê voz a mulheres, negros, povos originários, LGBTQIAPN+ e demais minorias. É preciso que o Itamaraty passe a refletir o Brasil: um país verdadeiramente diverso.

 

Referências: 

Exteriores – Mulheres Brasileiras na Diplomacia 

Podcast O Assunto com Natuza Nery, episódio “Mulheres no degrau de baixo do funcionalismo” 

Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras 

Mulheres no Itamaraty: a trajetória da inserção feminina na diplomacia brasileira, Larissa de Jesus Batalha 

Brasil de Fato 

Politize 

Folha de São Paulo 

Ministério das Relações Exteriores 

Gazeta do Povo – 

CNN Brasil 

 

Mini Bio: Júlia Coimbra Borges, 27 anos, advogada, mestra em Gênero, Desenvolvimento e Globalização pela LSE e redatora do time de comunicação da Elas no Poder. Apaixonada por música e Beatles, ama tocar violão, cantar e escutar um bom disco. 

Instagram: @juliacoimbrab

Linkedin: https://www.linkedin.com/in/julia-coimbra/

 

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