Mulher e a economia do cuidado: trabalho não reconhecido

Fernanda Wolski

voluntária da Elas

02/12/2021

O ser humano é uma das espécies que mais precisa de cuidados para sobreviver depois que nasce. Assim como no chegar da velhice. Se você está vivo hoje, é porque alguém cuidou de você em vários momentos da sua vida. Ainda que a Humanidade dependa em larga medida de pessoas dispostas a dedicar seu tempo a cozinhar, limpar, educar as crianças e tratar dos doentes, muitas vezes, essas atividades são invisibilizadas e exercidas sem qualquer tipo de remuneração.

Serviços como esses são parte do que pode ser chamado de “economia do cuidado”. Não vemos qualquer menção a eles nas teorias sobre o funcionamento da economia, dando a impressão de que os indivíduos, trabalhadores e empresários, nascem, se desenvolvem e morrem de forma autônoma e independente. Na verdade, toda uma cadeia de trabalho é dedicada a esse processo, sendo essencial para a manutenção da sociedade e das engrenagens econômicas.

No geral, sociedades capitalistas separam o trabalho realizado na reprodução social do trabalho de produção material, em um processo que envolve a marginalização dos agentes que atuam na primeira dimensão, que tradicionalmente são mulheres. Segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho, mulheres realizam três quartos do trabalho não remunerado de cuidado no mundo e dois terços dos trabalhadores de cuidado são mulheres. Comparativamente, mulheres dedicam em média 3,2 vezes mais tempo que homens ao trabalho não remunerado diário.

Mesmo quando as tarefas são terceirizadas, o que inclui a mão de obra na economia formal, os trabalhadores desse segmento, como enfermeiras, empregadas e babás, são desvalorizados e mal remunerados e, por sua vez, não conseguem pagar e receber o cuidado quando precisam. Com isso, gera-se uma contradição. Afinal, se o ser humano precisa de cuidados para sobreviver e nós estamos condenando quem fornece esse cuidado à pobreza e ao abandono, qual pode ser o resultado dessa equação? É nisso que consiste a crise do cuidado.

A evolução da divisão social do cuidado

A pesquisadora Nancy Fraser explica como chegamos nessa situação. No começo do capitalismo industrial, homens, mulheres e crianças passaram a vender sua força de trabalho nas fábricas em troca de salários, que suportavam seu sustento através do consumo. Rapidamente, porém, se percebeu que era preciso garantir a reprodução social dessas pessoas, para que se perpetuasse sua transformação em operários e consumidores.

Assim ganhou força a ideia de que a família precisava ser preservada e que os homens teriam que ganhar um salário suficiente para sustentá-la, enquanto a mulher seria responsável pelo cuidado da casa e dos filhos. A partir desse momento, estabeleceu-se que o trabalho associado à reprodução social seria um trabalho sem remuneração direta, associado à valorização afetiva, ao passo que a produção material teria uma remuneração financeira. A subjugação da mulher ao homem e seu papel submisso na sociedade veio a reboque.

Quando, no pós-guerra, as mulheres precisaram voltar ao mercado de trabalho, o Estado passou a arcar com os custos da reprodução social. Nesse momento, surgem os sistemas de proteção social que oferecem os serviços públicos de saúde, educação e previdência. Nos anos 1980, as novas crises financeiras retomaram a ideia de que o Estado deveria cumprir apenas um papel estabilizador da economia, mantendo os gastos enxutos e as contas equilibradas.

Como o empoderamento feminino não permitiria que as mulheres ingressas no mercado de trabalho retomassem as atividades de cuidado não remuneradas, no neoliberalismo, o cuidado passou a ser privatizado. Aqueles que podem, pagam pelos serviços de cuidado, mas trabalhadores de baixa remuneração que não têm os meios para terceirizá-los ficam socialmente vulneráveis.

É preciso chamar atenção para o fato de que essa história corresponde ao que ocorreu no centro do capitalismo. Na periferia, longe de prezar pela reprodução dos grupos que sustentavam as relações sociais, nomeadamente os escravizados, a lógica foi a exploração e extermínio. Nesses lugares, como no Brasil, criou-se a divisão racial do trabalho associado ao cuidado, que perdura até hoje, em que mulheres negras trabalham dentro das casas de famílias brancas e seguem vulneráveis na economia produtiva.

Os efeitos da pandemia no trabalho realizado por mulheres

A pandemia do Covid-19 escancarou a realidade não equânime na distribuição de tarefas no ambiente doméstico. A presença de mais pessoas em casa e a impossibilidade de terceirizar essas tarefas durante o isolamento, aumentou a carga de trabalho doméstico e de cuidado não remunerado sobre as mulheres. Pesquisas apontam que 41% das mulheres que mantiveram seus empregos formais afirmaram trabalhar mais durante a pandemia.

Com o decorrer da crise, ficou evidente também que os países liderados por mulheres tiveram melhor desempenho no seu enfrentamento. Estudos mostraram que países com mulheres à frente do poder sofreram até seis vezes menos mortes pela doença e se recuperaram mais rápido da recessão econômica. Buscando entender a razão para isso, pesquisadores da Harvard Business Review chegaram à conclusão de que lideranças femininas apresentam habilidades como iniciativa, agilidade, capacidade de comunicação e colaboração mais desenvolvidas, em comparação aos seus pares homens.

Eles atribuíram isso à noção de que mulheres expressam maior preocupação com o bem-estar e com o que os outros possam estar sentindo, além de confiar mais no trabalho e nos planos de equipe. Essas características são, indiscutivelmente, heranças de uma histórica atenção maior aos cuidados com o outro.

Alguns países vêm tentando promover maior inclusão do trabalho associado ao cuidado na economia formal. A Argentina aprovou em julho desse ano a lei que reconhece os cuidados maternos como tempo passível de contribuição para a previdência. Para cada mulher que passou por períodos de cuidados maternais após dar à luz, será adicionado um ano por filho na contabilidade do tempo de contribuição.

O país não foi o primeiro da América Latina a aprovar alguma medida neste sentido. Em 2008, o Uruguai aprovou a lei que reconheceu o trabalho materno. No Chile, o governo complementa a aposentadoria de mulheres com 65 anos ou mais, de acordo com o número de filhos. No entanto, no Brasil, ainda não contamos com alguma medida nesse sentido e, mesmo a menor idade mínima para a aposentadoria de mulheres, está em constante ameaça nas reformas legislativas.

Conclusão

A invisibilização do trabalho de cuidado é uma das responsáveis por perpetuar a desigualdade de renda entre homens e mulheres e entre bancos e negros. As mulheres, principalmente as mulheres negras, ficam marginalizadas da economia formal, mesmo desempenhando atividades cruciais para sua manutenção.

Elas estão à margem do processo produtivo, da remuneração justa e, consequentemente, privadas do direito de contar com o cuidado que destinaram aos outros durante toda a vida. A mensagem que fica é resumida pela filósofa feminista Silvia Federici: “Isso que chamam de amor é trabalho não pago”.

 

Texto de Fernanda Wolski. Assessora de planejamento de políticas públicas do Estado de São Paulo, consultora política e voluntária no time de Relações Institucionais e Advocacy da #ElasNoPoder. Gosta de escrever, ler sobre História e andar de bike.

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