Efeito Backlash: como o PL 1904/2024 afeta os direitos das mulheres?

Mariana Aquino

voluntária da Elas

26/08/2024

Discussões que dificilmente constroem consenso no Parlamento estão sendo disputadas no Judiciário, incentivando um contra-ataque do Poder Legislativo, o chamado “backlash”. O efeito, que surge nos Estados Unidos com o tema do aborto, hoje evoca repercussões pelo mesmo tema no Brasil, por meio do PL 1904/2024, e revela como a sociedade brasileira tem lutado para ser ouvida.

O que é o efeito “backlash”?

O efeito “backlash” pode ser entendido como a rejeição das decisões judiciais pelo Legislativo. Tem seu surgimento atrelado ao célebre caso Roe vs. Wade, julgado em 1973 na Suprema Corte dos Estados Unidos, no qual discutia-se se as leis antiaborto seriam compatíveis com os direitos fundamentais defendidos pela Constituição estadunidense. 

Os magistrados decidiram pelo direito constitucional de a mulher realizar o aborto, considerando algumas limitações. Apesar de ter sido revertido recentemente, o julgamento é considerado um marco do constitucionalismo, que determina o império da Constituição sobre as leis. 

A decisão de 1973 causou grande reação na sociedade americana, na qual grupos “pró-vida” se mobilizaram e conseguiram, nos anos seguintes, a aprovação de leis estaduais que limitaram ainda mais a realização do aborto. A essa movimentação denominou-se “efeito backlash”.

Como o Brasil tem sentido o efeito backlash?

Um dos casos de maior efeito backlash no Brasil ocorreu em 2016. À época, o STF considerou inconstitucional a prática da “vaquejada” por submeter animais à crueldade, ofendendo o art. 225, VII da Constituição Federal. Pouco depois, foi aprovada emenda constitucional (Emenda nº 96 de 06 de junho de 2017) dispondo que manifestações culturais que utilizem animais não seriam consideradas práticas cruéis. 

Recentemente, após anos de discussão, houve decisão do STF pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Em contraponto, tramita a PEC 45/2023, que prevê que tanto a posse quanto o porte de qualquer quantidade de drogas será considerada crime. 

Esses casos revelam a grande influência do Constitucionalismo no Brasil, no sentido de que a Carta Magna prevê direitos em abstrato, que devem ser regulamentados pelo Legislativo e garantidos no caso concreto, teoricamente de forma excepcional, pelo Judiciário. A discussão sobre o PL 1904/2024 é um dos mais recentes exemplos. 

O que aconteceu com o aborto legal?

O debate sobre o aborto legal é tão controverso quanto sua legalização. Por isso, o recorte deste artigo não entrará no mérito (mais informações sobre a situação do aborto no Brasil podem ser lidas aqui).

Para os fins deste artigo, a discussão se inicia em março de 2024, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução nº 2.378/2024 vedando o procedimento de assistolia fetal nas hipóteses de aborto permitido por lei, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas.

A resolução criou limitações ao aborto não previstas por norma federal (de hierarquia superior à de uma resolução) e violava a dignidade humana feminina. Entendendo pela ilegalidade, em maio de 2024, o ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu a referida resolução.

O Parlamento respondeu em “efeito backlash” ao apresentar um projeto de lei (PL 1904/2024) que não apenas proibia o aborto após as 22 semanas de gestação em qualquer caso, como também previa a equiparação do feito ao crime de homicídio. Assim, vítimas de violência sexual seriam obrigadas a manter a gestação caso ela chegasse às 22 semanas, do contrário, seriam consideradas assassinas, mesmo que as grávidas fossem crianças. 

Esse efeito backlash foi imensamente facilitado pelas atuais condições jurídico-regimentais da Câmara dos Deputados. No caso do referido projeto, havia acordo entre o Presidente da Câmara e a bancada evangélica para pautar sua tramitação urgente. Em segundos, sequer identificando o PL em plenário, o Presidente da Câmara fechou a votação, aprovando sua tramitação mais célere e, consequentemente, restringindo o debate. 

Porém, em um verdadeiro exercício democrático, a sociedade civil gerou uma forte reação contrária, de intensidade suficiente para constranger o Presidente da Casa a voltar atrás em seu compromisso e determinar que a discussão retornasse no segundo semestre de 2024. Tratou-se de uma vitória parcial, o PL pode aparecer a qualquer momento na pauta do Plenário. 

A falta de transparência na condução da pauta de votação, as votações híbridas e a banalização da tramitação de urgência (que deveria ser restrita a projetos de fato urgentes e com maior consenso), são exemplos de práticas que alienam a sociedade civil do debate público. Em contrapartida, o caráter garantista da Constituição permite a judicialização da defesa dos direitos humanos. Essa inversão de papéis é um demérito para o parlamento brasileiro e sobrecarrega o Judiciário.

O que se pode espera daqui para frente?

Ignorada pela Câmara dos Deputados, projetada institucionalmente para ser a caixa de ressonância da vontade popular, é possível prever que a sociedade continue a garantir seus direitos pelos meios legais, no Poder Judiciário.

Assim, a experiência permite um prognóstico para o backlash à brasileira: quanto mais o Parlamento limitar o acesso da população ao debate sobre os direitos fundamentais, mais o Judiciário será acionado para defendê-los com base na Constituição.

 

Sobre a autora: Mariana Matos de Aquino, advogada e atua na área de relações governamentais desde 2020. Pós-graduada em Direito Legislativo e voluntária do time de Articulação Política da Elas no Poder. Ama música, literatura e escrever. Sobrevive ao mundo político com muita meditação.

 

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