Aborto: uma questão de saúde pública

Julia Coimbra

voluntária da Elas

27/10/2023

O aborto ainda é um procedimento criminalizado no Brasil, permitido apenas em casos de estupro, risco à vida da mulher ou anencefalia. No entanto, apesar da proibição do procedimento, a possibilidade de penalização da mulher não tem contribuído para a diminuição dos casos de abortos provocados.

Aliás, o que se verifica na prática é que a criminalização não tem influenciado na redução do número de abortos realizados. Especialistas na área da saúde refletem que, mesmo sem a legalização do procedimento, ele continuará ocorrendo de forma clandestina e colocando em risco a vida das mulheres.

A clandestinidade do procedimento, por sua vez, gera diversos problemas, tornando essa questão um problema de saúde pública que evidencia diversas desigualdades estruturais enfrentadas pelas mulheres.

Os números do aborto no Brasil 

Segundo o Ministério da Saúde, em 2018, cerca de um milhão de abortos induzidos foram realizados no Brasil. No entanto, devido à criminalização do procedimento, esses números são imprecisos, uma vez que não contabilizam os abortamentos clandestinos, considerando apenas os casos que chegam ao sistema de saúde. Como resultado, especialistas estimam que, na realidade, ocorram pelo menos dois milhões de abortos anualmente.

Esses números são alarmantes, especialmente ao considerar que, de acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021, estima-se que uma a cada sete brasileiras com 40 anos já tenha realizado pelo menos um aborto ao longo da vida. A PNA também destacou que 43% das mulheres acabam sendo hospitalizadas devido a complicações no procedimento.

O estudo demonstrou, ainda, que mulheres negras, indígenas, com baixa escolaridade e que residam em áreas pobres são as que mais recorrem ao aborto. Esses dados evidenciam um recorte de raça e classe social que aumenta a vulnerabilidade dessas mulheres.

Além disso, entre aquelas que buscam o procedimento de forma clandestina, as mulheres de classe média, em sua maioria brancas, muitas vezes têm condições de acessar clínicas com padrões adequados de segurança, enquanto as mulheres pobres, pretas e indígenas são forçadas a recorrer ao aborto inseguro em condições insalubres. Houve até relatos de casos de estupro em clínicas clandestinas, bem como situações em que meninas ingressam no tráfico de drogas para obter recursos para realizar o aborto.

Esse cenário ilustra a profunda desigualdade de gênero existente no Brasil, bem como as múltiplas formas de violência enfrentadas pelas mulheres diariamente.

As consequências provocadas pelo aborto clandestino 

A principal consequência do aborto clandestino é, sem dúvida, a morte de dezenas de mulheres que se submetem ao procedimento sem o devido acompanhamento médico. Atualmente, o aborto é uma das principais causas de óbito entre gestantes no Brasil, especialmente entre mulheres negras. Devido à criminalização do procedimento, as mulheres frequentemente evitam buscar ajuda médica quando enfrentam complicações, resultando em óbitos evitáveis.

Além disso, de acordo com dados, 48% das gestantes que passam pelo aborto clandestino necessitam de internação para concluir o processo. Essa situação não apenas resulta na perda de vidas femininas, mas também gera custos significativos para o sistema de saúde. Por outro lado, se os procedimentos fossem realizados de forma segura, a maioria das mulheres não enfrentaria complicações, resultando em economias significativas para o sistema de saúde.

Além das implicações físicas, o aborto clandestino pode causar problemas na saúde mental, estigmatização da mulher e sentimentos de culpa, frequentemente agravados por crenças religiosas e julgamentos de terceiros. De acordo com especialistas, o aborto clandestino, realizado sem acompanhamento médico e educação sexual adequada, pode levar a distúrbios de saúde mental, como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático em muitas mulheres. Estes distúrbios podem ser fatais, uma vez que em 40% dos casos levam a tentativas de suicídio.

Aborto deve ser visto como questão de saúde pública 

Segundo a definição da Medicina Social Brasileira, um problema de saúde pública ocorre quando: 1 – a alta incidência dos casos do problema cria grandes custos para a sociedade devido à frequência de hospitalizações e sequelas; 2 – o problema gera sofrimento para o paciente e despesas para o SUS; 3 – causa alta mortalidade; 4 – existem tratamentos e prevenção disponíveis.

Consequentemente, a saúde pública diz respeito à saúde das pessoas, representando o conjunto de políticas públicas direcionadas a uma população, a partir de estudos que concluam que um problema precisa ser solucionado em busca da saúde e qualidade de vida da população.

Assim, podemos afirmar que o aborto é não apenas uma questão de saúde pública, mas também de (des)igualdades de gênero e raciais. Sua realização clandestina resulta em mortes, gastos públicos e complicações para a saúde da mulher. Da mesma forma, a sua criminalização submete as mulheres a uma série de violências que poderiam ser evitadas por meio de educação sexual e tratamento médico. Sem a criação de políticas públicas que priorizem as mulheres e seus direitos sexuais e reprodutivos, o aborto continuará sendo um desafio para a saúde pública brasileira.

Como solucionar a questão?

Está em discussão no STF a descriminalização do aborto, e se aprovada, mesmo que não legalize o procedimento pelo SUS, poderá incentivar mais mulheres a buscar apoio médico quando necessário. Vale ressaltar que nos países onde o aborto foi legalizado, observa-se uma redução no número de procedimentos realizados quando a legalização é acompanhada por políticas de saúde reprodutiva e educação sexual. 

Essa abordagem se apresenta como chave para resolver o problema. As mulheres precisam ser uma prioridade nas políticas públicas de saúde reprodutiva e sexual.

Ainda que o aborto não seja legalizado ou discriminado no Brasil, já que o país enfrenta uma onda de conservadorismo, medidas de educação sexual, políticas de prevenção à violência e discriminação contra a mulher, investimento em educação profissional, oportunidades de emprego, criação de creches e uma maior empatia por parte da população, podem contribuir para que menos mulheres tenham sua saúde afetada em decorrência de um aborto.

Precisamos enxergar o aborto com racionalidade e como uma medida de saúde pública, e não com moralidade, julgamento e responsabilização penal. Deixemos de violentar as mulheres e passemos a ajudá-las de vez! O que as mulheres precisam é viver. 

Referências:

Nexo Políticas Públicas – Aborto é problema de saúde pública

Drauzio Varella – Por que o aborto é uma questão de saúde pública?

Jornal da USP – Aborto é questão de saúde pública

Fiocruz – Estudo aponta que mulheres negras são mais vulneráveis ao aborto no Brasil

Gênero e Número – Abortos caem mas ainda levam 2 a cada 5 mulheres ao hospital

Gênero e Número – Brasil tem uma morte a cada 28 internações por falha na tentativa de aborto

Estadão – ‘Aborto é questão de saúde pública e de igualdade racial e de gênero’, afirma pesquisadora

Pencie – Por que aborto é um tema de Saúde Pública?

STF – Relatora vota pela descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação; julgamento é suspenso

Câmara dos Deputados – Aborto é um dos principais causadores de mortes maternas no Brasil

Agência Pública – Aborto inseguro é das principais causas de morte materna e mulheres negras sofrem mais

Revista Piauí – Os abortos Diários do Brasil

 

Mini Bio: Júlia Coimbra Borges, 27 anos, advogada, mestra em Gênero, Desenvolvimento e Globalização pela LSE e redatora do time de comunicação da Elas no Poder. Apaixonada por música e Beatles, ama tocar violão, cantar e escutar um bom disco. 

Instagram: @juliacoimbrab

Linkedin: https://www.linkedin.com/in/julia-coimbra/

 

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