Uma lei que não pegou? A ineficácia das cotas de gênero na política

Julia Coimbra

voluntária da Elas

31/08/2023

A tardia entrada das mulheres na vida política no Brasil teve graves consequências não apenas para a conquista de direitos, como para o quadro de severa sub-representação que ainda enfrentam atualmente. 

Essa entrada tardia se deve ao fato de que o sufrágio universal para mulheres foi instituído apenas em 1932. Isso significa dizer que as mulheres brasileiras só puderam votar e ser votadas a partir da década de 30. No entanto, esse direito foi limitado durante o Estado Novo e suspenso durante a Ditadura Militar. 

Após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, o natural seria que a participação feminina no debate político crescesse. No entanto, isso não ocorreu de forma expressiva. 

Apesar de as mulheres representarem cerca de 52% do eleitorado brasileiro (Tribunal Superior Eleitoral, 2022), elas ainda são minoria em cargos políticos. E mesmo após os recentes avanços legislativos alcançados pelas mulheres em termos de política, a porcentagem de participação feminina no poder permanece quase a mesma desde a década de 40. 

Com isso, as mulheres seguem à margem dos processos de criação de políticas públicas de gênero, sendo constantemente excluídas da tomada de decisões. 

O que são as cotas de gênero? 

Visando aumentar a participação política das mulheres, as cotas eleitorais de gênero foram instituídas para as eleições proporcionais (para vereadores, deputados estaduais e deputados federais) em 1997. 

A Lei nº 9.504, de 1997 estabelece as normas para as eleições brasileiras e institui as cotas de gênero. Segundo seu artigo 10, § 3o, cada partido deverá preencher um mínimo de 30% e um máximo de 70% de candidaturas de cada sexo. Isso é, os partidos deverão ter pelo menos 30% de candidaturas femininas (ou masculinas) em eleições proporcionais. 

No entanto, passados mais de 25 anos da instituição das cotas, as mulheres seguem sub-representadas no país. Atualmente, o Brasil ocupa a posição de número 132 (dentre 187 países) em um ranking da União Interparlamentar que mede a participação parlamentar das mulheres no mundo. O país possui apenas 17,54% de representação feminina na Câmara dos Deputados (União Interparlamentar, n.d).

Mais de 100 países já adotaram sistemas de cotas de gênero na política, sendo a América Latina uma das regiões que mais avançou nesse sentido. No entanto, apesar de o Brasil ter sido um dos primeiros países do grupo a adotar as cotas, ele permanece apresentando um dos piores resultados de sub-representação feminina, possuindo um sistema de cotas reconhecidamente falho e ineficaz (Gatto & Wylie, 2022).

A ineficácia das cotas possui diversas causas que, juntas, criam um quadro desfavorável para a entrada de mulheres no cenário político. Dessa forma, serão analisados a seguir algumas das falhas das cotas de gênero que tornam a lei ineficaz. 

1 – Sistema eleitoral proporcional de listas abertas 

O sistema eleitoral brasileiro prevê eleições majoritárias e proporcionais, que são aquelas em que as cotas atuam. As eleições proporcionais são aquelas em que se vota pelo candidato do partido ou pela coligação, mas, no final, elege-se apenas os candidatos mais votados. 

As eleições proporcionais no Brasil são de listas abertas, isto é, o eleitor escolhe em quem deseja votar, não precisando decidir dentre uma lista de candidatos pré-ordenados pelos partidos. Assim, a escolha parte do eleitor. Nos sistemas de listas fechadas, por sua vez, os eleitores votam nos candidatos que compõem as listas – e as mulheres precisam ser incluídas nessas listas.

Os especialistas indicam que o sistema de listas abertas facilita a eleição de mulheres, haja vista que os eleitores precisaram escolher entre os candidatos dessa lista e que elas devem ser posicionadas em lugares que lhes garantam reais chances de serem eleitas.

O nosso sistema, por outro lado, dificulta a eleição de mulheres. Além de possuirmos mais de 30 partidos inscritos nos quadros do TSE, o fato de não existir listas personaliza as eleições, deixando-as mais concorridas e caras. Assim, são inúmeros os candidatos disponíveis para a escolha do eleitor e, portanto, a competição intrapartidária aumenta, assim como a concorrência entre partidos. 

Ademais, as pesquisas apontam que esse cenário é desfavorável para as mulheres, pois favorece candidatos já conhecidos dos eleitores, ou seja, que já possuem uma carreira política consolidada. E estatisticamente falando, os homens iniciam sua carreira política mais cedo, uma vez que as mulheres muitas vezes precisam lidar com uma jornada dupla em suas vidas (lidar com a carreira e cuidar dos filhos/da família). Assim, os homens saem privilegiados pelo sistema. 

2 – Seleção de candidatos e distribuição de recursos 

Outros fatores que contribuem para a ineficácia das cotas são a seleção de candidatos e a distribuição de recursos por parte dos partidos. 

A legislação eleitoral brasileira garante autonomia para que os partidos estipulem os procedimentos para a seleção de seus candidatos e para distribuírem seus recursos discricionariamente. Portanto, como o partido estará sempre em busca de mais votos, – pois quanto mais votos receber, mais cadeiras no legislativo irá poder ocupar – ele sempre distribui seus recursos de forma a potencializar seus ganhos, da mesma forma que selecionará candidatos que possuem mais chances de vencer as eleições. 

Dessa forma, as mulheres seguem sendo prejudicadas. Candidatos com mais tempo de vida política sempre serão priorizados, e como já fora mencionado, esses candidatos tendem a ser homens. 

Além disso, as pesquisas também demonstram que os partidos estão inclinados a investir mais recursos em candidaturas masculinas. Não apenas alocando mais recursos financeiros, pois acreditam que os candidatos homens (com mais tempo na política) trarão mais retorno, mas também distribuindo mais tempo de televisão (e até mesmo melhores números de identificação. 

Essa falta de transparência dos partidos sobre suas tomadas de decisão prejudica as mulheres, além de facilitar a corrupção e dificultar a igualdade. 

3 – Candidaturas falsas, as chamadas “laranjas”

A autonomia garantida aos partidos, assim como a falta de punição, também facilita o surgimento da candidatura de laranjas. 

As laranjas são candidaturas falsas utilizadas para driblar a lei e o cumprimento das cotas de gênero. São nomeações de candidatas mulheres que não competem de fato nas eleições. Elas têm seus nomes inscritos, muitas vezes até mesmo sem seu conhecimento e consentimento, para que os partidos “respeitem” a porcentagem de cotas, sem precisarem de candidaturas femininas reais.

Dessa forma, observam a porcentagem de candidaturas femininas estipuladas pela cota, sem de fato investir em mulheres. Os recursos são então desviados para investir nos candidatos que o partido acredita que atrairão mais votos – ou seja, homens. Ressalta-se que pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário deveriam ser destinados ao financiamento e ao tempo de propaganda eleitoral para mulheres, no entanto, com as candidaturas laranjas, aquele percentual também é desviado. 

4 – Falta de lideranças femininas nos partidos

A falta de lideranças femininas nos partidos também contribui para a ineficácia da lei. Apesar de representarem um grande número de partidários, as mulheres ainda não ocupam muitas posições de liderança. 

Isso acaba sendo prejudicial às candidaturas femininas, pois são as elites partidárias as responsáveis pela tomada de decisão. Dessa forma, tanto a distribuição de recursos, como o apoio às candidaturas serão decididas pelas lideranças que, nessas circunstâncias, tendem a apoiar os homens, os quais possuem mais chances de serem eleitos e, muitas vezes, são amigos dos líderes políticos, familiares ou até mesmo de pessoas que “compram” esse apoio (clientelismo). 

5 – Sanções 

A lei das eleições não estabelece sanções expressas para os partidos que descumprirem as cotas. Dessa forma, fica a cargo do TSE analisar o descumprimento das cotas, bem como julgar e cassar mandatos provenientes de candidaturas laranjas e fraude às cotas de gênero. 

O TSE é o órgão responsável pelo regulamento das eleições e, portanto, o responsável por analisar e aprovar as contas dos partidos. Dessa forma, caberá ao órgão, na falta de sanções, analisar se os partidos cumpriram com a cota de gênero. 

Recentemente, o tribunal estabeleceu parâmetros para a configuração de candidaturas laranjas. Dessa forma, para a caracterização dessa prática – que é criminosa, equiparada ao crime de falsidade ideológica eleitoral previsto na Lei nº 4.737 -, caberá a análise dos requisitos. Se constatada a candidatura de laranjas, o partido fica sujeito a ter suas contas rejeitadas e ver a cassação de mandatos de seus membros. 

Assim, o que se analisa no cenário de hoje é que a punição pelo descumprimento das cotas está sujeita à análise discricionária do tribunal, mas não enseja uma punição prevista em lei. A falta de compliance da lei e de sanção é mais um dos motivos que leva à ineficácia da cota de gênero, pois, ainda que a descumpram, os partidos, na prática, não são punidos. 

Ademais, episódios como a discussão e provável aprovação da PEC da Anistia dos Partidos Políticos também contribui com esse cenário de inefetividade, pois é um claro aceno das instituições para que os partidos sigam descumprindo as cotas, pois nada acontecerá em termos sancionatórios. 

Há soluções para a falha das cotas de gênero?

Já dizia Marielle Franco que “falar sobre mulheres que lutam por outra forma de fazer política é essencial para o processo democrático”. E esse mesmo processo democrático não é de fato democrático se as mulheres, mais da metade da população brasileira, não estiverem representadas no debate. 

Diante desse problema complexo que se desenhou na política brasileira, será que existe uma solução para que as cotas passem a funcionar e contribuam para o aumento da participação feminina na política? 

Diversos especialistas indicam que o aumento de mulheres na liderança dos partidos pode contribuir para uma mudança efetiva. Apesar de mais mulheres na liderança não significar necessariamente que elas apoiarão a candidatura de outras mulheres e que tomarão decisões favoráveis a candidaturas femininas, as pesquisas demonstram que os partidos que mais elegem mulheres têm outras mulheres em posições de liderança, bem como que quando elas chegam na liderança, tendem a estimular que outras mulheres também cheguem ao poder. 

Além disso, faz-se necessária uma maior fiscalização por parte do TSE do cumprimento da distribuição do fundo partidário, do tempo de TV, do investimento em candidaturas femininas, bem como do cumprimento das cotas. Enquanto os partidos forem perdoados por não cumprirem as cotas, eles seguirão driblando a lei e não investirão em mulheres. 

Por fim, cabe a nós, como população, votar em mais mulheres e cobrar dos partidos, que incluam as mulheres no debate político. Assim como também devemos cobrar, dos políticos que elegemos, que promovam políticas públicas para mulheres, respeitem as cotas e denunciem fraudes eleitorais. 

Por fim, alguns especialistas propõem uma reforma na lei de cotas, para que listas fechadas sejam incluídas. Porém, com um Congresso Federal dominado por homens que querem manter o seu status quo, será mesmo que essas propostas teriam sucesso? Fica aqui a reflexão.

 

Mini Bio: Júlia Coimbra Borges, 27 anos, advogada, mestre em Gênero, Desenvolvimento e Globalização pela LSE e redatora do time de comunicação da Elas no Poder. Apaixonada por música e Beatles, ama tocar violão, cantar e escutar um bom disco. 

Instagram: @juliacoimbrab

Linkedin: https://www.linkedin.com/in/julia-coimbra/

 

Referências:

Tribunal Superior Eleitoral. (2022). Eleições 2022: mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-a-maioria-do-eleitorado-brasileiro#:~:text=Dos%20156.454.011%20de%20indiv%C3%ADduos,equivale%20a%2047%2C33%25.

Presidência da República. (1997). LEI Nº 9.504, DE 30 DE SETEMBRO DE 1997. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9504.htm

https://data.ipu.org/women-ranking?month=8&year=2023

https://www.idea.int/data-tools/data/gender-quotas/country-view/68/35

Gatto, M. A., & Wylie, K. N. (2022). Informal institutions and gendered candidate selection in Brazilian parties. Party Politics, 28(4), 727–738. doi:10.1177/13540688211008842

Wylie, K., & Dos Santos, P. (2016). A Law on Paper Only: Electoral Rules, Parties, and the Persistent Underrepresentation of Women in Brazilian Legislatures. Politics & Gender, 12(3), 415-442. doi:10.1017/S1743923X16000179

Janusz, A., Barreiro, S.-N., & Cintron, E. (2022). Political parties and campaign resource allocation: Gender gaps in Brazilian elections. Party Politics, 28(5), 854–864. doi:10.1177/13540688211018424

Oliveira, M. L. P. (2022). Candidaturas laranjas: o que são e como funcionam. Politize. Retrieved July 29 from https://www.politize.com.br/candidaturas-laranjas/

de Oliveira Ramos, L., & Afonso da Silva, V. (2020). The Gender Gap in Brazilian Politics and the Role of the Electoral Court. Politics & Gender, 16(2), 409-437. doi:10.1017/S1743923X18000879

https://www.politize.com.br/candidaturas-laranjas/

https://www.politize.com.br/mulheres-na-politica/

https://www.worldbank.org/pt/news/opinion/2022/05/05/pouco-progresso-para-as-mulheres-na-politica-no-brasil

https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/05/aliados-na-luta-por-mais-mulheres-na-politica#:~:text=De%20acordo%20com%20o%20IBGE,de%2015%25%20dos%20cargos%20eletivos.

https://www.hypeness.com.br/2022/03/participacao-das-mulheres-na-politica-do-brasil-e-uma-das-mais-baixas-do-mundo/

https://portal.fgv.br/cn/node/23611

https://www.generonumero.media/reportagens/a-politica-de-cotas-para-as-mulheres-no-brasil-importancia-e-desafios-para-avancar/

https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2018/Maio/fundo-eleitoral-e-tempo-de-radio-e-tv-devem-reservar-o-minimo-de-30-para-candidaturas-femininas-afirma-tse

 

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