Violência doméstica nas novelas: como a televisão influencia denúncias, e empodera vítimas

12/10/2023

Uma mulher aguarda o marido em casa, aflita. Ela sabe que qualquer eventualidade, por mais minúscula que seja, pode perturbar o humor do marido e condená-la a uma noite de espancamentos. Essa descrição pode ou não pertencer à vida real, mas representa toda a angústia das mulheres que vivem em situação de violência doméstica. 

O drama que a dramaturgia imita, de forma cada vez mais abrangente nas novelas brasileiras, vem transformando a percepção social sobre o tema da violência doméstica. O papel da televisão é fundamental na influência de denúncias e no empoderamento de mulheres que veem nas cenas de novela uma ferramenta de informação e encorajamento para sua libertação.

A televisão é o meio de comunicação de maior abrangência no Brasil e é assistida por 96,6% dos brasileiros, de acordo com levantamento realizado em 2010 pela Meta Pesquisa de Opinião. A pesquisa também informou que as novelas representam a segunda programação mais relevante para os brasileiros, perdendo apenas para os telejornais. 

Uma fonte de entretenimento, as novelas fazem parte da cultura brasileira e são capazes de influenciar desde preferências de moda e música até comportamentos sociais em nosso país. Os temas abordados nas novelas acompanham o que é relevante para as gerações, e, nas últimas décadas, um tema tem se transformado diante das câmeras: a questão da violência doméstica.

A sociedade brasileira, por sua fundação patriarcal, racista e religiosa, observou o papel social da mulher dentro de tais circunstâncias, e a sua representação nas novelas não poderia ser diferente. Foram os movimentos sociais e feministas que, a partir de pressões sociais por maior abrangência de direitos humanos, contribuíram para mudar o que se via na televisão e possibilitaram uma nova perspectiva no quadro comum: ao longo dos anos, as complexidades em torno do sofrimento da vítima ganharam destaque, e não os requintes de crueldade do agressor.

A transformação do papel da vítima na representação das novelas

A novela “Mulheres Apaixonadas” completará 20 anos em 2023, e sua exibição foi um marco na TV brasileira na representação da violência doméstica. A trama trazia a história de Raquel (Helena Ranaldi) e Marcos (Dan Stulbach), um casal carioca de classe média. Raquel era vítima de um marido violento e obsessivo, que a espancava com uma raquete de tênis, e a violentava física e psicologicamente. 

O enredo da história de Raquel e Marcos foi tão marcante no Brasil que os atores experimentaram a fúria e a compaixão do público com seus personagens em diversas abordagens na rua. E, apesar da simpatia e da consternação das pessoas pelo drama de Raquel, é inegável que nesse enredo a crueldade de Marcos era o grande líder da atenção do público. Era a forma como ele se comportava e a sofisticação de sua vilania que transtornou a opinião pública e guiou o interesse geral por essa trama, e não exatamente a reação de sobrevivência de Raquel. 

Ainda assim, a representação fiel de uma vítima de violência doméstica causou um significativo impacto social: no dia 27 de setembro de 2003, a novela transmitia uma cena em que Raquel finalmente denunciava seu abusador à Delegacia Especial da Mulher, e no dia seguinte, foi registrado um aumento de 40% no número de denúncias contra violência doméstica na mesma delegacia.

As informações do aumento do número de denúncias foram confirmadas pela delegada Catarina Noble, que também auxiliou Manoel Carlos na composição do episódio de libertação de Raquel. Dois anos depois, a Lei Maria da Penha foi instituída no Brasil.

No período que compreende 2000 e 2010, outras doze novelas acompanharam a temática da violência de gênero, exibidas nos principais canais de TV aberta do Brasil. Uma estratégia amplamente abordada pelas produções de teledramaturgia é o merchandising social, uma “função de ‘recurso comunicativo e narrativo’, responsável por elaborar e sistematizar mensagens educativas e pedagógicas com o objetivo de instruir e informar a audiência sobre determinada questão sociopolítica brasileira”, afirma Lorena Caminhas no artigo “Violência de Gênero e telenovelas nacionais: Um diagnóstico crítico”.

É o merchandising social que permite às emissoras explorar temáticas de impacto social de forma estratégica para gerar audiência, suscitar debates, influenciar a sociedade e, consequentemente, avançar discussões de interesse público-social. Mas como uma cena de novela é capaz de encorajar uma vítima de violência doméstica a dar um enorme passo e fazer uma denúncia?

Da tela para o telefone: O papel da representação na hora da denúncia

A maioria das vítimas de violência doméstica é privada de contato social: agressores, em geral, isolam as vítimas de familiares e amigos, confinando suas parceiras ao lar, onde sob seu domínio, perdem recursos de apoio emocional que as encorajem a denunciar. Neste contexto, é na televisão que essas mulheres encontram distração, informação e também uma possibilidade de recurso que lhes permita transformar sua situação.

A televisão adentra espaços onde muitas vezes nem a família nem a Polícia podem alcançar. E é justamente por seu alcance que ela desempenha um papel fundamental no apoio das causas sociais. Muitas vítimas só descobriram a existência de delegacias dedicadas ao combate à violência de gênero, a Lei Maria da Penha e o Disk Denúncia através de representações na televisão e, por meio da identificação com o drama, puderam agir em benefício próprio.

É importante salientar que as novelas fortalecem a informação não apenas das vítimas, mas também de toda a sociedade que está acompanhando os dramas representados: pessoas que não necessariamente estão em situação de violência, mas que conhecem alguém que esteja vivendo abusos, podem se informar e oferecer auxílio e refúgio.

A inserção de temas sociais nas telenovelas brasileiras – e em especial o tema da violência doméstica – é de urgente importância para a sociedade brasileira. O Brasil é um país líder não só na produção e consumo de teledramaturgia, mas também em números de violência doméstica e feminicídio. 

Os temas sociais abordados nas novelas se tornam ainda mais importantes considerando que os telejornais brasileiros, recheados diariamente com notícias de assassinatos de mulheres, raramente incluem em suas chamadas formas ou canais de denúncia, restringindo o tema ao sensacionalismo – o que acaba intimidando as vítimas e não as encorajando.

As novelas têm um papel social importante, e todos nós, espectadores ou não, temos a responsabilidade de zelar pela segurança das mulheres que sofrem violência doméstica. Que os temas de relevância social possam ser incorporados em todas as formas de comunicação cada vez mais, e que o abuso e a violência deixem de ser tabu e vergonha para as vítimas.

Se você está em situação de violência doméstica, denuncie no número 180 ou procure a Delegacia da Mulher mais próxima da sua região. Você não está sozinha.



Texto dedicado à minha tia Cida.



Helena Vitorino, redatora do time de Comunicação, Profissional de Direitos Humanos. Gosto de viajar, ler e conhecer o mundo

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