voluntária da Elas
04/02/2022
O sistema tributário brasileiro é um dos piores do mundo. Complexo e injusto, ele faz com que os mais pobres paguem mais impostos proporcionalmente do que os mais ricos.
Não surpreende o fato de que o Brasil também possui uma das piores distribuições de renda do mundo: os 10% mais ricos concentram 58% da renda do país (World Inequality Database, 2021).
Como as mulheres compõem o extrato mais baixo da distribuição de renda, a regressividade do sistema tributário nacional as prejudica mais intensamente.
Portanto, por penalizar os mais pobres, a política tributária penaliza também mais as mulheres, especialmente as mulheres negras, e agrava a desigualdade de gênero no país.
A maior parte da arrecadação fiscal no Brasil tem origem nos tributos indiretos cobrados sobre a produção e a venda de bens e serviços, no lugar de outros tipos de impostos, como o imposto sobre renda e riqueza.
Essa é uma característica comum de países em desenvolvimento, pois a arrecadação sobre a renda individual é inerentemente baixa. No entanto, esse padrão de cobrança tende a ser injusto e regressivo, uma vez que as famílias mais pobres gastam a maior parte da renda consumindo e os mais ricos, por sua vez, direcionam grande parte da renda para investimentos, que são menos tributados.
Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) mostram que 10% das famílias mais pobres do Brasil destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto 10% mais ricas gastam 21%.
Esse contexto de desigualdade social favorecida pela configuração fiscal regressiva, interfere também nas diferentes posições sociais dos homens e das mulheres na sociedade.
Como as mulheres são maioria dentro dos padrões de renda mais baixos, a estrutura tributária tende a ampliar as desigualdades de gênero. Nota-se que os homens são maioria em todas as faixas salariais do IRPF, compondo 56,8% dos declarantes e, a partir de 30 salários mínimos mensais, a participação das mulheres vai caindo até chegar a apenas 14% na faixa acima de 320 salários.
Vale ressaltar que nessas faixas mais altas a maior parte dos declarantes são recebedores de lucros e dividendos, portanto pagam alíquotas de IRPF menores. Além disso, a disparidade do patrimônio declarado entre homens e mulheres é ainda maior do que a percebida na renda.
Mesmo nas classes mais baixas, a desproporção é considerável, chegando a ser de 74% do patrimônio total para os homens, dentre os que estão na faixa de 5 a 7 salários mínimos.
A regressividade do sistema tributário também penaliza mais as mulheres quando se observa a diferença no perfil de consumo entre chefes de família.
Estudos apontam que, comparativamente, quando estão à frente do sustento da família, mulheres despendem maior parcela da renda em bens de consumo, como alimentação, vestuário e habitação. Já os homens gastam um percentual maior da renda em investimentos e aumento do ativo, como na aquisição de imóveis.
Conclui-se que, em comparação aos homens, mulheres são maioria nas faixas mais baixas do IRPF, têm a maior parte da sua renda destinada a consumo e menor patrimônio declarado. Essa série de condições faz com que elas arquem com uma maior carga tributária proporcionalmente, reforçando a desigualdade econômica entre gêneros.
O período de avanço das ideias neoliberais no mundo correspondeu ao surgimento da teoria neoclássica da tributação, baseada na ideia de tributação ótima.
A literatura dominante desse momento indicava que a renda não deveria ser tributada por impostos progressivos, pois a desoneração fiscal do capital incentivaria investimentos e contribuiria para o desenvolvimento econômico do país.
Nessa visão, os mais pobres seriam beneficiados pela criação de empregos e pelo aumento da renda à medida que a economia crescesse. A velha conhecida dos brasileiros de “ fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo”.
No entanto, o crescimento econômico pelo incentivo ao capital não significou a diminuição da pobreza. Pelo contrário, a desigualdade social deu um grande salto mundialmente. O bolo cresceu, mas não foi distribuído.
Diante desses resultados, a teoria da tributação ótima passou a ser questionada pelos pesquisadores da área. Anthony Atkinson, prêmio Nobel de Economia que defendia em 1976 a redução da tributação sobre rendimentos do capital, propôs, em 2015, um plano com medidas para diminuir a crescente desigualdade social no mundo.
Entre elas estão adotar uma estrutura de impostos mais progressiva; taxar heranças e doações; tributar a propriedade de forma progressiva e com valores atualizados; e, introduzir desconto de impostos para camadas mais pobres de renda.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) também publicou em 2017 o documento “IMF Fiscal Monitor: Tackling Inequality” recomendando progressividade tributária como uma das medidas para reduzir as desigualdades.
A publicação também afirma que não são observáveis na realidade os argumentos que suportam que taxas de imposto mais elevadas iriam contribuir negativamente na economia.
Enquanto a revisão da teoria da tributação ótima atinge alguns países, que avançam em termos de progressividade, o Brasil segue atrasado tanto na discussão teórica, como no ajuste legal.
Nesse momento em que propostas de reforma fiscal estão em debate no Congresso Nacional, o foco da discussão se concentra no problema da complexidade do sistema e simplificação das regras e alíquotas, mas não se debruça sobre a questão distributiva.
A reforma tributária é uma das mais aguardadas agendas do Congresso Nacional para 2022. Das quatro propostas que estão em tramitação atualmente, uma refere-se ao IRPF e as outras três propõem a simplificação do sistema por meio da unificação de impostos.
A PEC 110 (em tramitação no Senado) e a PEC 45 (em tramitação na Câmara) sugerem substituir vários tributos, que atualmente se sobrepõem por conta da forma de estado federativa, pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
O IBS deve incidir sobre todos os bens e serviços, portanto acabaria com as disputas sobre a natureza dos itens e elimina a necessidade de distinção entre serviço e bem para fins de determinação de qual o imposto com competência para tributar.
A terceira proposta, o PL 3887/20, foi elaborada pelo governo federal em um contexto de fatiamento da reforma tributária. Ele propõe apenas a unificação dos tributos federais PIS e Cofins, criando a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
Nessa proposta, ficam de fora os tributos estaduais e municipais, que são os principais causadores de disputas e distorções. Guardado o detalhamento de cada proposta, fato é que elas privilegiam a correção de um dos problemas do sistema tributário do país – aquele que afeta a eficiência econômica por conta da complexidade e da burocracia.
Diante da iminência de uma reforma tributária que não ostenta qualquer tendência de reparo a desigualdades de gênero, pesquisadoras reunidas no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Tributação e Gênero FGV Direito SP elaboraram propostas que agregariam à reforma tributária a função de contornar assimetrias de gênero no Brasil.
Elas sugerem medidas como a dedução para empresas que contratem mulheres chefes de família, a desoneração para empresas fundadas por mulheres, a concessão de isenção sobre absorventes íntimos e anticoncepcionais e a dedução da pensão alimentícia na declaração de ajuste anual do responsável não alimentante.
Políticas como essas costumam ser criticadas como promotoras de desequilíbrios e ineficiências, dentro de um ideal de neutralidade da tributação, isto é, a perspectiva de que a política fiscal deve afetar o quanto menos a livre alocação de recursos pelo mercado.
Tanto é que a PEC 110 e a PEC 45 vedam a concessão de isenções especiais. No entanto, defender o discurso da neutralidade fiscal em um país tão desigual como o Brasil equivale a insistir no aprofundamento das injustiças sociais e de gênero.
Texto de Fernanda Wolski. Assessora de planejamento de políticas públicas do Estado de São Paulo, consultora política e voluntária no time de Relações Institucionais e Advocacy da #ElasNoPoder. Gosta de escrever, ler sobre História e andar de bike.
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