Sem justiça, sem paz: caso Marielle e racismo brasileiro

14/03/2020

Quando, ao que tudo indica, o miliciano, vizinho de Jair Bolsonaro e ex-Bope Ronnie Lessa puxou o gatilho para assassinar Marielle Franco e Anderson Gomes, de dentro do carro dirigido pelo também miliciano Élcio Queiroz, talvez pensasse que estaria executando apenas mais um “trabalho”. O que ele não poderia prever era que esses assassinatos iriam impactar profundamente o Brasil e o mundo. 

Assassinar uma vereadora democraticamente eleita é algo ousado, para dizer o mínimo. Um crime para quem tem a certeza de que jamais será pego, seja pela prática quase perfeita, seja pela extensão das suas relações pessoais e políticas. 

Do assassinato, todas nós já estamos cansadas de saber, de remoer o que a mídia revela e de ver os poucos vídeos que foram liberados. O que precisamos, agora, é aprofundar, especialmente em três personagens: Ronnie Lessa, Elcio Queiroz e Adriano da Nóbrega, a elite da tropa do crime. 

Ronnie Lessa, miliciano e ex-Bope, está preso, acusado por ser o executor do assassinato de Marielle e Anderson. Conhecido por sua frieza e pela eficiência em tiro, o policial reformado mora no mesmo condomínio do presidente Jair Bolsonaro, onde uma casa não custa menos de R$700 mil. Até a sua prisão, em março de 2019, pelo caso

Marielle, Lessa era, curiosamente, um ficha limpa. As investigações no histórico de busca de Lessa na internet, dão conta de que ele pesquisou, e muito, sobre a vida da vereadora nas semanas que antecederam o assassinato: teve acesso à sua agenda pessoal e locais próximos de onde ela estaria, o que não deixou dúvidas sobre a premeditação do crime. A saber, a polícia chegou à esses dados porque, enquanto estavam de tocaia, aguardando Marielle sair do evento, uma luz de celular se acendeu no carro.

Dessa forma, a polícia, com local e horários exatos em que o telefone havia sido usado, pode rastrear a antena da região. A partir disso, foi realizada uma triagem dos números possíveis e chegaram ao número de Lessa e, com uma ordem judicial, a polícia teve acesso aos dados de busca de lessa, que estavam armazenados na nuvem dos aplicativos do aparelho. A polícia também encontrou, na casa de um amigo pessoal de Lessa, que diz ter apenas estocado as caixas à pedido do mesmo, 117 fuzis novos, porém incompletos e de segunda linha, do tipo M-16. 

Élcio Queiroz, miliciano expulso da PM após se tornar réu na Operação Guilhotina por fazer segurança ilegal em casas de jogos no Rio, com ligação com as milícias, também está preso, acusado de dirigir o carro utilizado na ação assassina. Élcio é quem, horas antes do assassinato de Marielle, vai até o condomínio onde moram Lessa e Bolsonaro e diz ao porteiro que iria na casa 58, a casa de Jair Bolsonaro.

Aqui, entra a controvérsia histórica de que Bolsonaro estaria em Brasília, por isso não teria como atender ao interfone, contudo, o porteiro confirma que conversou com “Seu Jair” que autorizou a entrada do carro. Fato é que Élcio entrou no condomínio, autorizado por alguém na casa 58, mas foi para a casa de Ronnie Lessa, vizinho de Bolsonaro. 

A arma do crime, provavelmente, foi jogada no mar da Barra da Tijuca. Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, que foram presos no mesmo dia, na Operação Lume, irão a júri popular pela acusação de assassinato de Marielle e Anderson Gomes. 

Sobre Adriano da Nóbrega, mais conhecido como “capitão Adriano”, vale começar dizendo que é apontado como líder do “Escritório do Crime”, um braço armado da milícia, especializado em assassinatos por encomenda. As investigações também deram conta e que o miliciano ex-capitão do Bope tinha muitas conexões com a família do presidente Jair Bolsonaro.

Exemplo dessa relação é que até pouco tempo, a esposa e a mãe e Lessa eram funcionárias da ALERJ (Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro), e trabalhavam dentro do gabinete de Flávio Bolsonaro, que era deputado estadual. Em sua defesa, Flávio, o filho mais velho de Bolsonaro, diz que a mãe de Adriano havia sido contratada pelo seu então assessor Fabrício Queiroz (ele mesmo!).

Acontece que, as investigações dão conta de que a mãe do “Capitão Adriano” havia depositado ao menos R$4,6 mil na conta de Queiroz e mais outros quase R$92 mil em outra conta. A famosa “rachadinha”. Além de empregar mãe e esposa de Adriano, Flávio Bolsonaro concedeu à Adriano da Nóbrega, em 2005, a Medalha Tiradentes, a mais alta honraria do Legislativo do Rio. Acontece que a honraria precisou ser entregue no Batalhão Especial Prisional, ou seja, na cadeia, pois Adriano estava preso, acusado de homicídio. 

A ligação de Adriano com a morte de Marielle está no fato dele ser considerado o chefe do “Escritório do Crime”, que é a milícia suspeita de assassinar a vereadora. Mas não era apenas por isso que ele se escondia. Até pouco tempo atrás, estava foragido há mais de um ano, desde que teve mandado de prisão expedido pela Operação Intocáveis, que buscava prender acusados de integrar a milícia no Rio de Janeiro. Hoje, Adriano está morto. Foi morto no sítio onde estava escondido, que pertence ao vereador Gilsinho da Dedé, do PSL (ex-partido de Bolsonaro), na Bahia, durante um confronto mal explicado com policiais militares. Suspeita-se de queima de arquivo. 

Adriano deixa uma ficha corrida extensa, uma Medalha Tiradentes e 13 celulares que aguardam perícia. Haveria ainda uma quarta personagem que precisaríamos aprofundar, mas não é possível neste momento pela falta de elementos de conhecimento público para atestar qualquer outra ligação fora os fatos narrados e comprovados acima. Contudo, é importante afirmar que o Presidente Jair Bolsonaro é um dos principais motivos da negação da família pela federalização do caso Marielle. 

Antes, a saber: a federalização permitiria que a apuração do assassinato deixasse de ser feito na esfera estadual, com a Polícia Civil e o Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro, passando a ser conduzido na esfera federal pela Polícia Federal e o Ministério Pùblico Federal. 

Desde abril, com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, especula-se com mais força que o presidente Jair Bolsonaro tentava interferir politicamente na PF. Em entrevista, Moro afirma que Bolsonaro queria colocar uma pessoa de sua confiança na direção-geral da Polícia Federal para que ele pudesse colher informações e relatórios de inteligência. A resposta de Bolsonaro veio na coletiva de imprensa com todos os ministros à sua volta e que todas nós assistimos, com certa e justificada confusão. 

Para além disso, é curioso o foco na superintendência do Rio de Janeiro. É sabido que o presidente construiu a sua carreira política, e a de dois filhos (Carlos e Flávio), no estado. Na reunião ministerial que Moro aponta como uma das provas para o desejo de interferência na PF pelo presidente, é explícita a preocupação de Bolsonaro com os seus parentes. Acontece que nenhum dos filhos de Bolsonaro é, ainda, alvo de inquérito da PF do Rio, contudo, o senador Flávio Bolsonaro é investigado pela Polícia Civil do RJ pelo esquema de rachadinha, como dito anteriormente. 

Em uma das mensagens de Bolsonaro a Moro no Whatsapp, o Presidente diz: “Moro, você tem 27 Superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro”. O pedido de federalização foi apresentado pela Procuradoria-Geral de República (PGR) e foi julgado pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, negou o pedido de federalização, entendendo que o caso deve permanecer no Rio de Janeiro. 

E onde está o racismo nisso tudo?

O assassinato de Marielle foi um crime político, mas também um crime racista em seu objetivo e desdobramentos. 

No Brasil, há ainda a idéia de que o racismo é um sentimento, que pode ser amenizado com pedidos de desculpas, longas cartas de lamento pelo “descuido” e tantos outros mecanismos para desviar do que realmente é o racismo: um crime inafiançável e imprescritível previsto em lei. Acontece que, por aqui, para além do crime previsto em lei, o racismo também pode ser letal. E Marielle expunha essa letalidade em seu trabalho. 

Por aqui, aliado ao racismo, a Polícia Militar também é letal. Já que, sendo os negros 55% da população brasileira e 75% dos mortos pela política, é o racismo que autoriza a política a atirar indiscriminadamente, e Marielle também expunha essa letalidade como relatora da comissão na Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro que iriam acompanhar a intervenção federal no estado (que, à época, estava sob o comando do general Walter Souza Braga Netto, que hoje é Ministro da Casa Civil do Governo Bolsonaro), e em suas diversas denúncias sobre a forma truculenta com que o 41º Batalhão da Polícia Militar, em Irajá, por exemplo.

Como disse Sueli Carneiro, “a morte de Marielle é a metáfora extrema de tudo que há pra dizer sobre racismo e desigualdade” e é a mais pura verdade. Nas linhas acima, afirmei que o racismo é letal e, quero trazer que a essa letalidade tem três dimensões: 1) a primeira, é a óbvia morte do corpo pelas necropolíticas aplicadas; 2) a segunda, se refere ao epistemicídio, a aniquilação e apagamento dos nossos saberes, dos nossos legados; 3) e a terceira é a nossa morte simbólica, a nossa invisibilidade.

Trago isso para lembrá-las de algo que nem todas se recordam: o quanto Marielle foi caluniada com fake news, mentiras deslavadas sobre sua história de vida, horas após a sua morte. Mentiu-se que ela tinha ligações com o crime organizado, com facções criminosas e toda sorte de difamações que tinham por objetivo único tentar justificar o injustificável: o assassinato de uma mulher preta, militante de direitos humanos, vereadora e lésbica. 

O racismo provoca uma desumanização tão profunda que permite que parte a sociedade brasileira tripudie sobre um assassinato, porque se entendem no direito de apagar seu legado e silenciar, mais uma vez, sua voz e seus ecos em uma grande parte da sociedade que tentava chorar sua morte. 

Quando digo que tentávamos chorar sua morte, digo isso não porque não conseguimos. Choramos, mas choramos pouco perto do que gostaríamos e tínhamos direito, porque até o luto nos é tolhido. Tivemos de escolher entre chorar a morte de uma das nossas e denunciar a enxurrada de mentiras e difamações, compartilhadas inclusive por uma desembargadora, que apareciam a cada segundo contra sua honra, história e legado. Tivemos de escolher entre chorar sua vida interrompida de maneira brutal e disputar a narrativa pública sobre o significado da sua morte, sobre a importância da sua vida e seu trabalho, sobre a dignidade da sua memória.

Recentemente, registramos outro problema relacionado à essa morte simbólica. Em março deste ano, às vésperas do segundo ano de sua morte, a Rede Globo e a Globoplay anunciaram a criação uma série ficcional baseada na vida de Marielle que deve estrear no ano que vem. Acontece que, entre as pessoas (todas brancas) que estavam à frente do projeto, uma delas é José Padilha.

O diretor de “Tropa de Elite”, responsável pela romantização e espetacularização da truculência das polícias contra negros nas favelas cariocas, pelo grande aumento de inscrições no Bope e que cravou e ilustrou no imaginário brasileiro a idéia de que “bandido bom é bandido morto”. Não satisfeito, Padilha ainda dirigiu a série “O Mecanismo”, com uma narrativa que é uma das mais desonestas intelectual e factualmente sobre o período político que retrata. É este homem quem irá dirigir o tal seriado sobre Marielle. 

Angela Davis diz uma frase que muita gente gosta de repetir, que diz que “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura a sociedade se movimenta com ela”. É uma verdade e Marielle foi morta por essa verdade, porque se movimentou. Se movimentou durante dez anos na Comissão de Direitos Humanos do Rio de Janeiro, se movimentou no parlamento, em uma estrutura patriarcal, heteronomativa, misógina e racista.

Marielle se movimentou em um estado genocida e foi morta. Sua morte foi um aviso: “Não ouse movimentar as estruturas”. Mas, a “cria da Maré”, como ela orgulhosamente se apresentava, jogou luz à muitas outras mulheres pretas que também se movimentam, especialmente na política. Eu inclusa. E isso é imparável. Esse é o seu legado vivo, inconteste, à altura da sua grandeza. 

Há, sim, quem goste de romantizar as nossas mortes, e para estes digo: não precisamos de mais mártires. Precisamos de gente viva, para que vivam com dignidade. E precisamos de gente viva, com voz e disposição na luta pela justiça que nos é negada. 

As mortes se somam, se avolumam tão rapidamente que nós, negros e negras, repito, somos tolhidos até do direito ao luto. Se fossemos sair às ruas a cada um dos nossos que morre de forma brutal, não sairíamos dela, afinal, só neste ano a polícia brasileira matou e 218 pessoas, sendo que destas, quase 64% eram pretas ou pardas. 

Nos EUA, há uma frase muito repetida durante esses protestos que estão acontecendo que é “say their names”, que significa “digam seus nomes”. A frase pede que digamos os nomes daqueles negros e negras que foram assassinados pela brutalidade racista da polícia norte americana. Por aqui, Lélia Gonzalez já nos ensinou que o negro precisa ter nome e sobrenome senão os brancos irão dar o nome que eles quiserem pra nós. Por isso, Amarildo Dias de Souza, Claudia Silva Ferreira, Luana Barbosa, Marielle Franco, Anderson Gomes, Agatha Felix, João Pedro, Miguel Otávio e tantos outros precisam e devem ser nomeados sempre que possível. 

O resumo é triste: na estrutura social racista, vidas negras não importam.

É por isso que estamos tomando as ruas. É por isso que os protestos por justiça racial não podem ser lidos como violentos. Violento é o sistema, violenta é a estrutura, violentas são as mortes injustificáveis que só crescem. Não sairemos das ruas, porque se não temos liberdade, se não respeitam a nossa história, se não conseguimos justiça, não há nenhuma possibilidade de “normalidade democrática”, não há nenhuma possibilidade de vivermos em paz enquanto nos matam livre e impunemente. 

SEM JUSTIÇA, SEM PAZ! 

Justiça para Amarildo Dias de Souza, Claudia Silva Ferreira, Luana Barbosa, Marielle Franco, Anderson Gomes, Agatha Felix, João Pedro, Miguel Otávio e tantos outros. Paz para suas famílias e ao povo preto brasileiro. 

Mariana Janeiro é especialista em comunicação, filosofia e semiótica, e líder feminista em Jundiaí. 

@marianajaneiro

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