Racismo e literatura: Como a falta de representatividade na literatura impacta diretamente o preconceito racial

Karoline Marques

voluntária da Elas

23/11/2023

Um dos maiores desafios da luta antirracista é a busca por representatividade. Parece bobo precisar gritar a plenos pulmões que livros, filmes, premiações, cargos de poder, justiça e política precisam espelhar o que a sociedade é: diversa, múltipla, plural. Representatividade é uma palavra bonita, quase poética, mas, na prática, simboliza mais uma luta por uma igualdade quase utópica.

A autora, professora, feminista e grande nome do movimento antirracista estadunidense bell hooks — assinado em minúsculo como forma que hooks encontrou de enfatizar, segundo ela, a “substância de seus livros, não de quem é” — estudou como a imagem desempenha um grande papel na determinação de como um grupo é representado e como amar a negritude é uma parte importante e sub-representada da promoção da igualdade social. 

Isso acaba se tornando uma posição perigosa quando colocada em oposição às estruturas sociais supremacistas brancas. Como amar a negritude se esta está invisível ao entretenimento cotidiano?

Cenário da representatividade negra na literatura infantil

Em 2020, pela primeira vez, os best-sellers infantis apresentaram mais personagens negros do que brancos, possivelmente influenciados pelos intensos protestos após a morte de George Floyd e pela crescente popularidade do movimento Black Lives Matter. Esse aumento na representação racial na literatura infantil refletiu uma demanda maior por livros com essa temática.

No entanto, um relatório da WordsRated, um grupo internacional de análise e pesquisa literária, examinou 1.511 best-sellers infantis de 2012 a 2021 para compreender o cenário da diversidade infantil e sua evolução ao longo do tempo. O estudo constatou que, em 2021, houve uma redução de 23% na presença de personagens negros em comparação com o ano anterior, indicando uma mudança no panorama da diversidade infantil.

Enquanto em 2020 havia mais personagens negros do que brancos em best-sellers infantis pela primeira vez, no ano seguinte houve uma queda de 31% no percentual de best-sellers infantis escritos por autores negros. A porcentagem de best-sellers escritos por autores brancos subiu para 17% nos últimos 10 anos. 

Atualmente, existem cerca de 3,5 best-sellers infantis de um autor branco para cada best-seller infantil de um autor negro. Vale ressaltar que os best-sellers são significativamente mais diversos do que os livros infantis como um todo, conforme dados do CCBC (Centro Cooperativo de Livros Infantis):

  1. Apenas 12,12% dos livros infantis são sobre personagens negros ou africanos
  2. Apenas 7,64% dos livros infantis são escritos por autores negros ou africanos

Esses dados evidenciam uma problemática grave: o que pode ser feito para garantir que todas as crianças continuem a ler livros que reflitam suas vidas e fortaleçam seu senso de identidade?

Embora, nos dias atuais, seja mais acessível para as crianças brasileiras encontrar livros com protagonistas negros, até poucos anos atrás era difícil encontrar um livro representativo e popular além do clássico “Menina Bonita do Laço de Fita”, de Ana Maria Machado, publicado em 1986. 

Este livro foi um marco significativo na literatura para as crianças dos anos 90 e 2000, mas ainda assim era quase único. Mesmo que o número de livros representativos tenha aumentado hoje em dia, ainda está longe do ideal equitativo.

A literatura como uma ferramenta antirracista

A leitura é uma das ferramentas mais importantes para o exercício da mente, mas como incentivá-la sem as ferramentas básicas para tornar esse momento importante e confortável? Enquanto na infância ainda é possível encontrar histórias representativas, uma lacuna surge ao chegar na adolescência. 

Poucas pessoas conseguem citar um ou mais livros literários que tragam representação nessa fase; livros técnicos sobre raça, racismo e temas similares dominam as prateleiras de quem procura consumir literatura nessa temática.

É notável que, para além da necessidade de combater o racismo, na prática é necessário naturalizar o antirracismo em todas as facetas da vida cotidiana, incluindo o entretenimento. Quantas pessoas negras podem dizer que o protagonista do seu livro preferido se assemelha fisicamente a elas? Quantas pessoas conseguem imaginar naturalmente a cor do personagem como não branca se o autor não explicitar?

É crucial ampliar a presença da negritude na literatura para que a representatividade aconteça também nos momentos de lazer, como um casal protagonista em um romance, por exemplo. Daí a necessidade de um movimento literário que crie histórias representativas abordando e combatendo o racismo, mas que também proporcionem conforto, funcionem como espelho e ofereçam entretenimento.

A ideia de compreender como o racismo está presente, ainda que de forma velada, na literatura, levou-me a realizar uma pesquisa anônima nos meios digitais, na qual: 

  • 81,8% dos questionados disseram que não lembravam de terem lido algum livro com protagonista negro na infância.
  • 63,6% conhecem entre 1 e 2 autores negros; 18,2% conhecem entre 3 e 4; 9,1% conhece 5 ou mais e uma porcentagem igual não conhece nenhum.
  • Quase a metade das pessoas que responderam ao questionário (45,5%) disseram que se o autor não deixa explícito, não imaginam o personagem negro.
  • 80% alegou que não dá preferência para ler autores negros.
  • 63,6% leu recentemente um livro protagonizado por um personagem negro.
  • 81,8% disseram que já haviam visto capas de livros com personagens negros refletidos.
  • 54,5% dos entrevistados alegaram que nunca tinham refletido sobre o tema, enquanto 36,4% já haviam questionado essa pauta e 9,1% marcaram a opção “talvez”.
  • A totalidade dos que responderam a pesquisa afirmaram que achavam o questionamento válido.

Dentre alguns dos autores negros citados, nomes como Angela Davis, Chimamanda Ngozi Adichie, Djamila Ribeiro, bell hooks, Nicola Yook e Maya Angelou se repetiram. Sobre os livros protagonizados por personagens negros Quincas Borba (Machado de Assis), O perigo de uma história única (Chimamanda Ngozi Adichie), Mulheres, Raça e Classe (Angela Davis), Amoras (Emicida), Amor por todas as formas (Karoline Fernanda Marques), Conectadas (Clara Alves), This Woven Kingdom (Tahereh Mafi), O Sol Também é uma Estrela (Nicola Yoon), Tudo e todas as coisas (Nicola Yoon) e Juntando os Pedaços (Jennifer Niven).

Em uma análise abrangente, as respostas evidenciam o ponto levantado no início do artigo: livros de romance, por exemplo, não vêm à memória com a mesma facilidade que obras informativas antirracistas, como “O Perigo de uma História Única” e “Mulheres, Raça e Classe”. Isso demonstra que os livros voltados para o entretenimento ainda estão imersos em um processo de embranquecimento que permeia as prateleiras.

Representatividade negra: caminhos possíveis

Escolher títulos que naturalizem a luta antirracista em todas as vertentes e que reflitam as questões raciais, culturais, e diversifiquem a literatura é uma maneira eficaz de reduzir preconceitos e valorizar culturas historicamente marginalizadas.

Enquanto a diversidade não estiver presente em todos os âmbitos da vida e os best-sellers não destacarem protagonistas que representem a diversidade e a igualdade racial, essa meta permanecerá apenas como um objetivo. Como salientado por Angela Davis: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista; é necessário ser antirracista.”

Referências: 

hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019b. 

https://wordsrated.com/representation-childrens-literature/

https://www.bbc.com/portuguese/geral-53411587

https://afrolink.pt/bell-hooks-numa-sociedade-racista-a-recuperacao-esta-no-acto-e-arte-de-amar/

 

Karoline Fernanda Marques nasceu em 09 de novembro de 2000 em Brasília (DF), é escritora da ANE – Associação Nacional de Escritores, voluntária do UNICEF Brasil, coordenadora do time de comunicação da Elas no Poder e estudante de Direito em Lisboa, Portugal. Escreve livros antirracistas em que as protagonistas são sempre mulheres negras.

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