O apagamento das mulheres em contextos de guerra

Karoline Marques

voluntária da Elas

28/09/2023

Se há uma história sobre a qual certamente todos têm uma noção de como aconteceu, essa é a história das guerras. Livros de história, documentários e filmes hollywoodianos buscam esclarecer esses períodos históricos, mas o fazem predominantemente de uma perspectiva masculina.

As mulheres, por sua vez, ou não são retratadas de maneira significativa nas batalhas e guerras, ou são apresentadas como figuras secundárias nos livros e filmes que abordam esses conflitos humanos. A história das guerras é contada do ponto de vista masculino, com os soldados que o passado sempre nomeou, mas e as mulheres? Por que a história continua a apagar o protagonismo feminino no contexto das guerras?

As mulheres e a Primeira Guerra Mundial

A Primeira Guerra Mundial desempenhou um papel fundamental na transformação do papel da mulher na sociedade, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. As mulheres deixaram de ser relegadas exclusivamente ao papel de mães e esposas que lhes era imposto até então. 

Nos países mais afetados pelo conflito, as mulheres foram convocadas para assumir os postos de trabalho dos homens que foram enviados para a guerra. Esse período marcou o fortalecimento das mulheres e, nos anos seguintes ao término do conflito, elas conquistaram o direito ao voto em países como Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos.

Em 1918, Alemanha, Áustria e Polônia aprovaram leis para legalizar o voto feminino. No mesmo ano, o Reino Unido promulgou legislação que concedeu a algumas mulheres o direito de participar das eleições parlamentares, e em 1928, finalmente, todas as mulheres britânicas obtiveram o direito ao sufrágio nos mesmos termos que os homens.

Centenas de milhares de mulheres foram empregadas na indústria de armamentos, desempenhando funções como motoristas, enfermeiras, operárias em fazendas e fábricas, secretárias em escritórios e até mesmo no serviço público. Segundo o Museu Imperial da Guerra, o número de funcionárias do sexo feminino em fábricas de munições no Reino Unido chegou a quase 1 milhão em 1918. 

O total de mulheres empregadas no serviço ferroviário britânico também aumentou de 9.000 para 50.000 durante o conflito. Na França, as indústrias de armamentos chegaram a ter um quarto de sua mão de obra composta por mulheres no início de 1918. Nos Estados Unidos, as indústrias convertidas para a produção de materiais de guerra também empregaram força de trabalho feminina, com mulheres de todas as classes sociais contribuindo para o esforço nacional de guerra. 

Além disso, mulheres europeias e americanas desempenharam papéis fundamentais na linha de frente, atuando como enfermeiras, motoristas de caminhão e ambulâncias, mecânicas e cozinheiras.

No Reino Unido, o primeiro serviço uniformizado feminino foi estabelecido em 1916, após uma investigação do Ministério da Guerra que demonstrou que muitos dos trabalhos desempenhados pelos homens que estavam lutando na França também poderiam ser realizados por mulheres.

Mesmo nos piores dias do conflito, a maioria dos serviços permaneceu operacional na Europa e nos Estados Unidos graças ao esforço das mulheres, cujo papel era fundamental tanto para a condução da guerra quanto para a manutenção da economia e o funcionamento dos governos de seus países.

Nos séculos XVIII e XIX, algumas esposas de soldados acompanhavam seus maridos ao campo de batalha, e algumas até se disfarçavam de homens para se juntarem às lutas. No entanto, no século XX, surgiu a necessidade do Exército de criar um grupo feminino para auxiliar nas questões relacionadas ao conflito. 

Foi assim que surgiu o chamado Queen Mary’s Army Auxiliary Corps, o Corpo Auxiliar do Exército da Rainha Mary, que era uma unidade composta exclusivamente por mulheres e que desempenhava uma ampla variedade de funções auxiliares. Esse movimento levou à criação de vários outros grupos femininos nas Forças Armadas, como o Serviço Naval Real Feminino e a Força Aérea Real Feminina.

Mais de 100 mil mulheres se juntaram às forças armadas britânicas durante a Primeira Guerra Mundial. No entanto, foi apenas durante a Segunda Guerra Mundial que as mulheres puderam se alistar oficialmente no Exército.

A Segunda Guerra Mundial e elas 

Com a Segunda Guerra Mundial, as mulheres vivenciaram a maior participação ativa em um contexto de guerra. 

Durante o período da Segunda Guerra, ela [a mulher] experimentou uma maior participação na esfera pública, quando um grande contingente de homens foi deslocado para a frente de combate. Embora não convocadas para o alistamento militar obrigatório, as mulheres contribuíram para os esforços de guerra candidatando-se para as vagas de emprego abertas, por exemplo, nas indústrias bélicas (ALMEIDA; DE JESUS, 2016, p. 12).

Com as milhares de perdas nos primeiros dois anos de guerra, as mulheres começaram a tomar funções militares, como enfermeiras, espiãs e outras carregavam armas em trincheiras.

A Inglaterra foi o primeiro país a reconhecer a necessidade do trabalho feminino nas batalhas, aderindo a essa convocação, começaram pedindo mulheres voluntárias, mas como o voluntariado não foi suficiente, em 1941 o governo britânico foi recrutando as mulheres para cobrir as perdas que ocorriam ao longo da guerra. 

Começou convocando as mulheres solteiras, mas logo depois, as casadas também foram chamadas, e as únicas mulheres dispensadas eram as mães com filhos menores de 14 anos. Em 1942, 6 milhões e 769 mil mulheres estavam envolvidas no esforço de guerra na Grã-Bretanha.

 Os Estados Unidos adotaram a ideia em sequência, mas em uma tentativa de manter os padrões “femininos” aceitos na época, ambos os países estabeleceram que a mulher não poderia atirar, só fazer todo o resto do trabalho que uma guerra exige, inclusive sobreviver.

A União Soviética foi o país que melhor incorporou as mulheres na guerra, elas, inclusive, acreditavam ser um dever participar da guerra para defender a sua pátria e família e se candidataram voluntariamente.

O Canadá chegou a mobilizar 50.000 mulheres em suas forças armadas, chegando a representar 25% da mão de obra envolvida no esforço de guerra, pela primeira vez na história do país, as mulheres tinham acesso às forças armadas. No mercado formal de trabalho, a participação feminina cresceu cerca de 89% se comparado a anos anteriores, no ano de 1944. 

O número de mulheres trabalhando era de 812 mil, das quais 261 mil trabalhavam nas fábricas de armamentos, 30% trabalhava na indústria aeronáutica, sendo responsáveis pela produção de 16 mil aviões. 

O trabalho voluntário também envolveu milhões de mulheres canadenses, organizadas em associações e clubes locais. A Força Aérea Canadense entrou pra lista das primeiras a admitir mulheres e, em julho de 1941, foi criada a Força Aérea Feminina Auxiliar do Canadá (CWAAF). 

No mesmo ano, o exército criou o Serviço Feminino Armado Canadense (CWAC), já a Marinha foi a última a aceitar as mulheres em sua instituição, no ano de 1942, com a criação da Reserva Feminina da Marinha Real do Canadá (WARCNS) onde assumiram funções administrativas. Aguerra elevou o  valor social do trabalho feminino, mas a remuneração das militares não era igual à dos homens, elas seguiram ganhando os menores salários.

As mulheres, o Brasil e as batalhas

Já no Brasil, a Marinha foi a primeira das três Forças Armadas brasileiras a abrir espaço para o ingresso das mulheres. O governo criou um destacamento militar, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), que partiu para os campos de batalha da Itália em 1944. Por pedido das enfermeiras norte-americanas, já há três anos em guerra, foi pedido o engajamento de enfermeiras na FEB, o que inseriu as mulheres no campo militar, para atuar no cenário de guerra. 

Foi criado o Decreto-Lei n° 6097, de 13 de dezembro de 1943, com o Quadro de Enfermeiras de Emergência da Reserva do Exército (QEERE), cujas candidatas deveriam ser brasileiras natas, solteiras ou viúvas, ter entre 22 e 45 anos de idade e alguma formação prévia em enfermagem e, foi então que 67 enfermeiras, sendo 61 hospitalares e 6 no transporte aéreo, foram integradas ao Serviço de Saúde da FEB.

A história do Brasil, por exemplo, é um exemplo claro desse apagamento, pois já na independência do país a versão é contada a partir do grito de “independência ou morte” proferido por Dom Pedro I às margens do rio Ipiranga, mas, a participação das mulheres no processo da independência foi crucial para que ela ocorresse. 

A presença emblemática de mulheres-soldados junto ao Exército é representada, pioneiramente, pela imagem de Maria Quitéria de Jesus Medeiros, a primeira mulher a integrar o exército braileiro, e lutou contra as tropas portuguesas. Maria Felipa nunca teve seus feitos registrados, provavelmente por ser pobre, preta e ex-escravizada, mas foi o nome que liderou a resistência na Bahia contra as forças portuguesas. 

Por trás da figura de Dom Pedro, esteve também uma mulher, a imperatriz Maria Leopoldina, responsável pela condução de uma reunião com ministros de Dom Pedro I, cujo resultado foi uma carta que o príncipe recebeu e foi decisiva para a aclamação da Independência, mas a história coloca a figura de D. Leopoldina como melancólica e mal amada. 

O apagamento das mulheres em contextos de guerra

Esse apagamento não parece combinar muito com o Brasil, um país que nasceu da assinatura de uma mulher na ata de uma reunião, onde a primeira escola pública gratuita foi instituída por uma mulher, a primeira greve geral foi iniciada por mulheres, operárias da indústria têxtil de São Paulo, enfim, as mulheres contribuíram ativamente para vários avanços na sociedade brasileira e fora dela.

Apagamento e esquecimento

As mulheres foram figuras de muita importância na história das batalhas, mas, de alguma forma esconder o nome e a história dessas mulheres que foram de trabalhos administrativos a espiãs ajuda a manter a narrativa historicamente baseada no sexismo e a perpetuar o machismo do estereótipo de fragilidade feminina. 

A jornalista e escritora Svetlana Aleksiévitch percebendo que a história das guerras é contada em uma narrativa completamente masculinizada, escreveu o livro “A guerra não tem rosto de mulher”, que conta sobre a participação feminina no  Exército Vermelho soviético durante a 2ª Guerra Mundial, onde quase um milhão de mulheres lutaram e não tiveram sua história contada. 

Seu trabalho foi consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2015, sua ideia foi quebrar o paradigma contado pelos filmes hollywoodianos que mostram homens fortes, com armas a tiracolo e o olhar tomado pela fuligem, não é só mais um livro sobre a guerra, não é só mais um livro escrito por eles e para eles com palavras masculinizadas, é uma obra que conta a história dessa guerra, pela percepção delas, que atuaram no front e que sempre estiveram apagadas, afinal, ninguém as queria ouvir:

“A história das guerras costuma ser contada sob o ponto de vista masculino: soldados e generais, algozes e libertadores. Trata-se, porém, de um equívoco e de uma injustiça. Se em muitos conflitos as mulheres ficaram na retaguarda, em outros estiveram na linha de frente”.

A sociedade é moldada de uma forma que a discussão para entender o por quê desse apagamento das mulheres em contextos de guerra (e em todos os outros contextos) é quase nula. No mundo:

  • Marie Curie inovou a ciência, salvando milhares de soldados na Primeira Guerra com as suas experiências;
  • Joana D’Arc um nome importante na Guerra dos Cem Anos, foi queimada em praça pública aos 19 anos ao ser acusada de heresia e bruxaria por um tribunal eclesiástico inglês e francês;
  • A polonesa Krystyna Skarbek foi uma das primeiras mulheres a servir como agente britânica na Segunda Guerra Mundial;
  • Nancy Wake foi um dos nomes mais importantes na luta contra os nazistas na mesma guerra;
  • Dorothy Lawrence uma jornalista inglesa que queria ser correspondente de guerra, fingiu ser homem para estar nas trincheiras, e, posteriormente, seu livro de memórias sobre esse período foi censurado pelo governo;
  • A dançarina neerlandesa Mata Hari foi condenada ao fuzilamento na França por atuar como espiã em prol da Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial;
  • A soviética Lyudmila Pavlichenko foi uma sniper responsável pelo abatimento de 309 soldados nazistas;
  • Susan Travers não informou seu gênero no formulário para se tornar membro oficial na Legião Estrangeira Francesa ela chegou a conduzir um caminhão pegando fogo em meio a uma perseguição.

O tempo tenta apagar as mulheres na história, na ciência, na literatura, na guerra, as narrativas masculinas ignoram o direito à memória dessas mulheres que nunca foram ouvidas. As mulheres na batalha exerceram trabalhos administrativos, foram aviadoras, foram da Marinha, tanquistas, paraquedistas, operadoras de artilharia, atiradoras… Mas também foram silenciadas, e para lutar contra o retrocesso e a opressão machista e patriarcal, é preciso resgatar essa memória, suas lutas, ideias, estratégias e histórias. 

Referências:

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 392p.

Como 1a Guerra Mundial impulsionou direitos das mulheres. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-60659505>. Acesso em: 12 set. 2023.

Mulheres na Segunda Guerra Mundial – e no front de suas vidas. Disponível em: <https://primaveraeditorial.com/mulheres-na-segunda-guerra-mundial-protagonistas/>. Acesso em: 12 set. 2023.

As mulheres brasileiras na Segunda Guerra Mundial. Disponível em: <https://www.defesanet.com.br/ecos/noticia/36068/as-mulheres-brasileiras-na-segunda-guerra-mundial/>. Acesso em: 12 set. 2023.

O apagamento das mulheres na história e o direito à memória. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/o-apagamento-das-mulheres-na-historia-e-o-direito-a-memoria/>. Acesso em: 12 set. 2023.

 

Karoline Fernanda Marques é autora de livros antirracistas, coordenadora da equipe do Twitter da ONG Elas no Poder, integrante da Associação Nacional de Escritores – ANE, voluntária do UNICEF Brasil, brasiliense de nascença, mineira do coração e moradora de Lisboa, Portugal, mãe de gato, graduanda em Direito e pesquisadora de raça e gênero.

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Comentários (1)

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Nara Rúbia 29 de setembro de 2023 Filha da Rita, que fez dela esse fenômeno. Que orgulho de vcs!
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