Neoliberalismo e qualidade da nossa saúde mental: afinal, existe relação?

Dandara Coêlho

coordenadora da Elas

22/01/2022

Para além do claro cunho cômico de alguns memes em redes sociais, eles evidenciam que o tratamento psicoterapêutico individual é visto como a chave para a eliminação de qualquer tristeza ou insatisfação do indivíduo, ainda que a causa de tais sentimentos ou condições mentais seja macro. 

Vilões de nós mesmos pelo que exatamente? 

Talvez a fim de validarem externamente alguns sentimentos – positivos e negativos – em relação a si mesmas e aos outros, as pessoas buscam as redes sociais. Ali, expõem constantemente seus sentimentos de fracasso, culpa, inadequação em relação à própria vida.

Alguns de nós, indivíduos, colocam-se como vítimas do próprio sentimento, mas também como seus próprios carrascos. Reproduz-se uma lógica de que somos as únicas responsáveis pelo próprio sofrimento, e de que temos de buscar no sistema/mercado a cura individual para isso. 

Não é preciso procurar muito para notar que, mesmo nas nossas “bolhas”, vários dos sofrimentos individuais são comuns a muitas pessoas. Ainda assim, a terapia é apresentada leviana ou inconscientemente – ainda que em forma de meme – como a solução para dores que podem decorrer de condições sociais e estruturais da nossa realidade. 

A emergência dessa forma de o indivíduo pensar a si mesmo está relacionada com a expansão do neoliberalismo. 

O neoliberalismo altera nossas formas de pensar, sentir e viver. Culpabilizamos a nós mesmos pela nossa conduta individual de não ter usado canudo de papel e, assim, causar a poluição dos mares e a morte de tartarugas marinhas; ou por não produzirmos o quanto queríamos para nós mesmas e, assim, desenvolvermos um quadro de depressão ou ansiedade (quando na verdade jornadas e metas extenuantes de trabalho e relações interpessoais abusivas normalizadas, representam mais adequadamente as principais causas para aquela condição mental individual). 

O pensamento neoliberal: o objetivo (conquistado) de mudar e sugar a ”alma” do indivíduo 

A economia não produz só objetos, ela também produz sujeitos. E, nesse sentido, o neoliberalismo define-se não somente como política econômica, mas como política para o sofrimento. 

Nascido nos anos 1930 com Lippman, Mises e Hayek, o neoliberalismo foi renovado pelos integrantes da Escola de Chicago nos anos 1960, como Friedman, Stigler e Becker, alguns dos quais viajaram pessoalmente ao Chile de Pinochet, com seu regime totalitário, para implantar o referido modelo. 

Se o liberalismo tentava proteger o trabalhador do sofrimento (porque se ele sofresse, poderia parar uma linha de produção), o neoliberalismo precarizou o trabalho, sem garantias e proteções, transformou direitos em serviços, despolitizou a vida (a classe trabalhadora começa a se enxergar meramente como indivíduo, e não como classe) e reforçou o sofrimento individual.

Para alguns leitores, isso pode parecer uma falha do modelo neoliberal mas, na verdade, o neoliberalismo tinha esse efeito como objetivo e teve bastante sucesso em alcançá-lo. Isto porque os neoliberais entenderam que, ao aumentarem o sofrimento individual do trabalhador, potencializam sua produtividade. 

Não há zonas “fora do mercado”, tudo é o mercado, cada pessoa é o empreendedor de si mesmo que “deve se ocupar individualmente de aumentar sua produtividade e garantir sua empregabilidade” (Dunker, 2017, p. 285), superando as expectativas, otimizando, performando, racionalizando. 

O indivíduo passa a usar aqueles verbos de ação também em suas relações, com os outros e consigo mesmo. Tem-se a quebra de laços sociais, mas também a negação do conflito, que passa a ser criminalizado e visto como uma anomalia; o trabalhador insatisfeito é sempre “livre” para se demitir e buscar outro trabalho, sem ter qualquer segurança ou vínculo com o empregador além do contrato formal. Nessa visão do mercado, alguém que está insatisfeito nos seus contextos de vida pode sempre melhorar, performar, se superar. 

O homem neoliberal: aquele livre e proprietário de si, que não precisa do outro 

Esse novo modo de subjetivação (a forma como recebemos o mundo e enxergamos a nós mesmos, aos outros e a sociedade) individualiza a culpa pelo fracasso. Não há necessidade de um supervisor ou carrasco externo a você: é você quem se vigia para sempre render mais (o que Foucault entende por governamentalidade). 

Toda inadequação àquela forma produtiva, inclusive a improdutividade, vira patologia, anomalia. Dentre as novas patologias, gera-se a depressão, que seria a potencialização dessa autocobrança (e a confirmação do fracasso, já que nos frustramos nessa tentativa perpétua de nos auto valorizarmos sempre mais). 

Boa parte dos profissionais médicos, no entanto, tratam as novas patologias como algo intrinsecamente biológico; assim, é o corpo individual que precisa ser tratado. Alguém muito crítico, por sua vez, passa a ser visto como alguém possivelmente frustrado ou com problemas psicológicos a se endereçar. 

A autoculpabilização contínua e a forçada adaptação do indivíduo a um sistema doentio são convenientes para aqueles poucos que ganham com isso: temos empresas, multinacionais, mídia, o 1% das pessoas no mundo que detêm a mesma riqueza dos 99% restantes, favorecidos pelo sistema global desigual e injusto, enquanto o indivíduo continua se enxergando como destacado de um coletivo e unicamente culpado pelo próprio desemprego, pela própria depressão, pelo próprio analfabetismo, pela própria fome.

Aos indivíduos excluídos do atual sistema reduzido e flexível de produção, atribui-se uma dificuldade “individual”: não teriam eles a “resiliência” de sobreviverem nas novas condições: 

[…] a emergência do conceito de resiliência e o declínio relativo de seu conceito antecessor, o stress, pode ser entendido em um contexto ideológico de expansão do neoliberalismo. Aprender a gerenciar suas emoções, principalmente a raiva e o ciúme, retornar rapidamente a um estado subjetivo anterior, reduzindo a capacidade de permanecer afetado por uma transformação, manter o otimismo e expandir a rede de relações sociais compõem um perfil de funcionamento compatível com trabalhos flexíveis, excesso de interveniência micropolítica nas empresas e, sobretudo, uma autoimagem de si mesmo como empreendedor.” (Dunker, 2017, p. 36) [Grifos meus] 

Prega-se a salvação pelo consumo, pela produtividade e pela terapia, para que o indivíduo expie uma culpa introjetada por si mesmo a partir da assunção do modo de vida neoliberal. 

Por fim, pensar novos começos 

A partir da introjeção do pensamento neoliberal, na qual a liberdade é individual, negativa (sou livre se faço o que quero, sem nenhuma resistência externa) e livre é o indivíduo empreendedor de si mesmo, culpabilizamos a nós mesmos por tudo o que nos acontece. Viramos nossos próprios algozes, quando, na verdade, para uma sociedade histórica e estruturalmente doente, muitas soluções precisariam ser elaboradas a nível macro, enquanto coletividade, levando em consideração o contexto maior que nos adoece.

Reitera-se que fazer terapia é essencial. Assim como também é importante – e urgente – que pensemos em novas subjetividades, com consciência de classe e politização da vida. A política, nesse sentido, precisa novamente ser reconhecida como fruto de construção coletiva, e não como tecnocracia. 

Processos terapêuticos e/ou de autoconhecimento podem conduzir o indivíduo à percepção de si como parte de um todo social e como interdependente dos demais indivíduos daquele coletivo. Embarquemos nesses processos também com o objetivo de desmentir esse falso universal (o mercado) que diz nos acolher e nos integrar, e trabalhemos nossas responsabilidades sem ouvir essa vozinha neoliberal dentro da nossa cabeça, que diz termos toda a culpa por toda essa realidade que vivemos, cada um na medida do seus próprios prazeres e sofrimentos. 

 

Texto de Dandara Coêlho, voluntária da Elas.

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Comentários (1)

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Lucas 28 de fevereiro de 2023 uma amiga minha, certa vez, disse que toda vez que tentava desabafar com amigas, ouvia um “e a terapia, tá em dia?”, o que na interpretação dela era que hoje em dia era adotada uma postura “cada um por si” na saúde mental. eu disse à época que não, nada a ver, e que na verdade era um sinal de que as amigas apenas se importavam com ela. esse texto me trouxe uma nova perspectiva sobre o assunto.
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