Marília Mendonça: um exemplo de como a mídia e a sociedade não estão preparadas para o sucesso de mulheres

Iara Diniz

voluntária da Elas

26/11/2021

Em um artigo publicado pelo jornal Folha de São Paulo, trechos como “nunca foi uma excelente cantora; era gordinha; brigava com a balança” foram utilizados para definir Marília Mendonça, dias depois da cantora morrer em um acidente aéreo em novembro deste ano. Era um artigo e, como todos os artigos, emitem a opinião de quem escreve e não necessariamente da empresa que o publica. Mas quando li aquele texto, que inclusive falava sobre como Marília lutou contra o machismo, me perguntei: “Ninguém notou que tinha algo errado?”

Talvez tenham notado [e alertado]. Não posso falar com propriedade porque não sei sobre os processos de edição na Folha de S. Paulo. Mas posso falar da minha experiência enquanto jornalista: a mídia não está preparada para lidar com o sucesso de mulheres, nem dentro e nem fora dela. E isso precisa mudar.

Caso Marília Mendonça

Não há dúvidas que as jornalistas da Folha de S. Paulo foram indiretamente ofendidas e desrespeitadas por aquele texto sobre Marília. Prova disso foram os artigos que se seguiram àquela publicação, como o de Mariliz Jorge e Bianka Vieira, verdadeiras notas de repúdio à tentativa de reduzir o que a cantora construiu à aparência dela. Algo que bem sabemos, homens não são submetidos. 

Não me cabe aqui citar nomes e nem irei fazer por acreditar que preferências musicais são exatamente isso: preferências. Mas não é difícil pensar em quantos homens, com produção musical extremamente inferior a Marília, jamais tiveram trabalhos questionados. Ou mesmo em quantas mulheres foram reduzidas ao título de “esposa” em reportagens.

Esta semana mesmo, Anitta foi descrita como “A ex de Neymar que vai cantar na Libertadores” pro jornal argentino Olé. Conteúdos machistas são recorrentes no jornalismo e não apenas em reportagens. Recentemente, o Estadão divulgou um evento nas redes sociais com o seguinte título: “Homens debatem a importância da liderança feminina”.

Parece necessário ter que dizer que nós, mulheres, não precisamos que o nosso sucesso seja validado por homens ou atrelado a eles. E a mídia precisa parar de buscar essa validação. 

É fato que temos avançado muito nesse aspecto, e permito-me dizer que devemos isso ao olhar vigilante de mulheres que ocupam as redações e se levantam diante de conteúdos que reforçam estereótipos de corpos e comportamentos a que estamos sujeitas em uma cultura patriarcal. É preciso reconhecer que já vivemos uma época em que mulheres de biquínis estampavam a capa de grandes jornais e eram reduzidas a objetos sexuais. Isso ainda existe, mas em uma proporção significativamente menor. 

Precisamos avançar

Hoje, temos espaço para discutir sobre aborto, direitos reprodutivos e sexuais das mulheres e, por vezes, levantamos pautas feministas nas reportagens. Isso é uma conquista e, como toda conquista, precisa ser comemorada.

Mas precisamos avançar dentro das redações para identificar gargalos. Caso contrário, venderemos bandeiras que, internamente, não são compradas e continuaremos reproduzindo machismos ao nos deparar com mulheres de sucesso. 

Reconhecer o fenômeno que a cantora foi era muito fácil, não precisava ser fã ou conhecê-la a fundo. Bastava olhar para os números: 8,3 milhões de ouvintes mensais no Spotify, 22 milhões de inscritos no Youtube, dona da live mais assistida na pandemia no mundo, com mais de 3 milhões de visualizações simultâneas. Mas isso não foi suficiente para evitar que ela tivesse o talento reduzido.

Marília era uma mulher que rompia os padrões. Não era magra, não era musa, não era “bela, recatada e do lar”. Conquistou espaço em um terreno majoritariamente masculino e criou seu próprio gênero. Se tornou protagonista e trouxe o protagonismo das mulheres para as músicas. E talvez isso explique o incômodo de tanta gente, inclusive da imprensa, que acompanhou rigorosamente cada quilo perdido pela cantora. E, assim como fizeram com ela, também aconteceu com a artista Anitta, com a imprensa reportando cada troca de namorado da cantora.

Anitta rompeu fronteiras com a música, fez do trabalho uma grande empresa, ganhou milhões e atingiu níveis inimagináveis de sucesso. Foi reconhecida internacionalmente como a “Beyoncé carioca”. Na mídia brasileira, contudo, há quem ainda se apegue ao fato de Anitta ser sexy demais, festeira demais, uma mulher que rebola a bunda, como se isso fosse um problema. 

A sociedade tem medo de Anittas e Marilias porque são mulheres que ameaçam o status quo. E mudar o status quo, significa ver homens abrindo mão de privilégios e dividindo cadeiras e espaços com mulheres. Dói no bolso e também no ego. Sucesso demais incomoda, principalmente de uma mulher. Já dizia a escritora africana Chimamanda Ngozi na música Flawless, de Beyoncé: “Você pode ter ambição, mas não demais. Você deve querer ser bem sucedida, mas não tão bem sucedida. Caso contrário, ameaçará um homem”.

Texto de Iara Diniz. Jornalista, escreve sobre representatividade, gênero e eleições. Não abre mão de um livro e várias xícaras de café. 

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