Na linha de frente da luta e da emancipação: As múltiplas formas de resistência das mulheres palestinas

Cecília Delfino

voluntária da Elas

01/12/2023

Ao longo dos séculos, houve um ocultamento em relação a alguns conflitos. O racismo ocidental provocou em vários momentos históricos uma surdez e cegueira coletivos em relação a alguns povos, enquanto em outros casos, quando as vítimas eram ocidentais e brancas, os conflitos recebiam grande atenção. 

Se por um lado os bombardeios russos aos territórios ucranianos foram devidamente condenados pela comunidade internacional, por outro a ocupação israelense na Palestina desde 1948 é minimizada há décadas, sobretudo pelo Ocidente. 

Não diferente, os discursos antirracistas desempenham papel crucial na história e resistência das mulheres palestinas que estão não só envolvidas na luta pela liberdade, mas também na linha de frente de diferentes formas. Para além disso, elas precisam lidar com o patriarcado e a misoginia, presentes tanto nas civilizações ocidentais quanto orientais. 

Em vários momentos da história, as mulheres e seus corpos foram objetos do exercício de poder nas guerras. No caso das palestinas, isso as leva a uma dupla resistência: contra a ocupação e o patriarcado. De um lado, seus corpos se tornam sinônimo de resistência nacionalista, fomentado pelo seu papel ativo nessa luta, de outro seus corpos são alvos e formas de controlar o povo palestino. 

O histórico papel das mulheres na resistência palestina e suas múltiplas faces As mulheres palestinas nos movimentos anticoloniais

Ao pensar as mulheres palestinas, o imaginário ocidental retrata uma mulher árabe, muçulmana e oprimida, vista normalmente como vítima – e portanto, sem agência – de uma sociedade patriarcal e extremamente machista, vítima da cultura árabe, do código islâmico, da violência masculina, da dependência internacional e atraso econômico ou, raramente, como a radical terrorista. Estes são estereótipos construídos a partir de uma visão ocidentalizada que analisa todas as mulheres não ocidentais como passivas e subjugadas, colocando rótulos como se fossem objetos e homogeneizando-as.

A história foi narrada por aqueles que detinham o poder, os quais mantiveram as mulheres palestinas como um ‘anexo’ do todo, isto é, fora do debate político. Mas diferente desse senso comum, as mulheres palestinas são centrais nos movimentos anticoloniais e na busca por reconhecimento da comunidade internacional. Quando suas existências são há décadas inviabilizadas, envolver-se na luta de resistência é quase pré-requisito para se manterem vivas. Embora possa parecer silenciosa por vezes, essa luta é parte fundamental da união de um povo contra o neo(colonialismo). 

Ao se deparar com a impotência bélica de sua comunidade – mediante a falta de posse de armamentos – para lutar uma guerra e se defender, restou a elas envolver seus corpos no conflito para buscarem ser ouvidas pelo restante do mundo. Tornaram-se, assim, fundamentais para manter de pé a memória de seu povo e de sua cultura, transmitir as identidades e tradições para as próximas gerações, na tentativa de não se deixar serem apagados ou moldados pelos seus opressores. 

Entretanto, seu papel não se resume a seus corpos ou preservação de sua identidade, as mulheres palestinas assumiram papéis tradicionais de cuidado, como enfermeiras, mas também criaram movimentos de resistência popular e buscaram o diálogo político. Assim, elas encontraram na política, cultura, educação, maternidade, luta armada e até na própria existência, uma forma de resistir à ocupação do território palestino.

A participação feminina esteve mais conectada inicialmente aos movimentos nacionalistas, restringindo-se à luta pela libertação. Igualmente, essa participação feminina não fora levada a sério pelos homens no início e, apesar de suas vidas sofrerem muitas mudanças, a base da sociedade se manteve ainda sobre uma estrutura patriarcal.

Desde 1920, com o Mandato Britânico que durou até 1948, as mulheres palestinas desempenharam um papel ativo na luta nacional. Houve um aumento na participação das mulheres na política e em manifestações, protestando ao lado dos homens contra o colonialismo britânico, bem como a criação de organizações sociais. 

A década de 1920 e 1930 foi marcada, de fato, pelo início dos movimentos das mulheres contra o colonialismo. Em 1933, surgiu a Zahrat Al-Uqhawan (Flores de Crisântemo), uma organização social que se tornou uma organização de mulheres armadas, atuando em combates contra o mandato britânico e gangues sionistas até 1948. A participação das mulheres na luta armada ocorre, de certa forma, desde o início da ocupação da Palestina. Muitas mulheres tiveram papel indireto, através do fornecimento de informações, alimentos e armas, por exemplo, aos combatentes.

Em 1936, as palestinas promoveram uma greve geral que culminou em uma revolta popular mais tarde. Nessa época, muitas foram presas devido ao contrabando de armas na Grande Revolta. As mulheres criaram várias organizações, como a Sociedade de Mulheres Árabes Tahdhib Al-Fatat e a Casa de Socorro das Mulheres para o Cuidado da Criança, atuando nos setores de saúde, mas também político, social e econômico.

A educação teve papel fundamental na luta feminina. Com a falta de ensino público para mulheres, escolas particulares foram criadas por palestinos. Assim, as mulheres puderam se destacar na vida econômica, política e cultural, realizando projetos sociais e ampliando o mercado de trabalho para outras. 

Todavia, a criação do Estado de Israel sufocou esses movimentos, levando grande parte dos palestinos ao exílio. Al-Nakba, “a catástrofe” em árabe, refere-se à criação de Israel em maio de 1948, bem como à destruição de cidades e expulsão de mais da metade de palestinos de suas terras. 

A partir daí, a sociedade palestina foi desintegrada em 3 grupos: os expulsos para países vizinhos ou outros; os que continuaram no Estado recém-criado e os que se dirigiram para os territórios restantes da Palestina histórica, Gaza, Cisjordânia e Jerusalém. Nesse período, as organizações coletivas de mulheres adquiriram maior grau de sofisticação política à medida que os palestinos buscavam se reerguer.

Nos anos 1964, foi criada a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), que reforçou a ideia de criar uma estrutura unificada para as mulheres. Já em 1965, a União Geral das Mulheres Palestinas (UGPM) foi criada, uma federação que abrangia as organizações femininas palestinas no território, com o objetivo principal de ser um movimento ativista contra a ocupação israelense. Isso possibilitou que as mulheres adquirissem uma estrutura apropriada para participar da política.

Todavia, em 1970, o órgão ganhou novos rumos para além da luta nacionalista. A melhora nas condições de vida das mulheres palestinas e a busca por autonomia através do emprego e da educação se sobrepuseram. Assim, os anos 80 foram marcados por movimentos femininos populares, que buscavam a autonomia das mulheres da saúde à política.

A eclosão da Primeira Intifada em 1987, que perdurou até 1993, foi o primeiro protesto popular em massa dos palestinos contra a ocupação israelense. As mulheres palestinas desempenharam um papel crucial, organizaram protestos nas ruas e manifestações pacíficas e administraram creches, educaram crianças e outras mulheres mesmo após o fechamento de escolas por Israel, criaram clínicas improvisadas, auxiliaram na elaboração de um programa de tipagem sanguínea que beneficiou milhares de pessoas, contrabandearam alimentos e suprimentos médicos e organizaram serviços de socorro aos feridos palestinos. Sobretudo, representaram cerca de 3.000 presas sem acusação e foram um terço de todos os mortos nesse período. Houve, ainda, tentativas de diálogo entre mulheres palestinas e israelenses, consideradas as mais promissoras na época.

Em 2000, a Segunda Intifada – que eclodiu com uma revolta violenta de palestinos na Cisjordânia e Faixa de Gaza – resultou no grande aumento da violência e prejudicou fortemente as mulheres palestinas. Ao se tornarem mais vulneráveis, uma parte significativa passou a apoiar o modelo político islâmico e as organizações islâmicas. No entanto, elas tiveram sua situação cada vez mais deteriorada após o fim da Segunda Intifada, sob crescente violência, marginalização e insegurança, que têm aumentado a cada ano.

O desastre humanitário após o 7 de outubro de 2023

Dois meses após o ataque do Hamas a Israel, que resultou na “contra-ofensiva” israelense, a situação se deteriora cada vez mais no Território Palestino Ocupado e em Israel. Mais de 1.400 pessoas foram mortas em Israel, segundo as autoridades, e mais de 200 pessoas, incluindo crianças, foram feitas de refém. 

Por outro lado, ainda mais degradante é a situação do povo palestino. Somente em Gaza, mais de 14.000 pessoas foram mortas, incluindo 5.500crianças e mais de 2.500 mulheres, de acordo com o Ministério da Saúde na Faixa de Gaza. Em um conflito com partes desiguais, e diante de violações do Direito Internacional Humanitário, as maiores vítimas são mulheres e crianças. 

Com respaldo no discurso securitário de “defesa”, assassinatos em massa de civis têm ocorrido sob os olhos da comunidade internacional, assim como cortes no acesso a alimentos, água, medicamentos, eletricidade, combustível e bombardeios a hospitais e escolas que afetam 2,2 milhões de palestinos, além de jornalistas internacionais, equipes da ONU, dentre outros.

A precariedade gerada pelos cortes reprimiu inúmeros outros direitos das mulheres e levou a restrições de questões básicas, como higiene e menstruação, e à maternidade, visto que as gestantes enfrentam dificuldades para dar à luz devido à falta de equipamentos médicos

Tais questões, porém, foram ocultadas diante do massacre ocorrido no último mês. Nesse contexto, que beira a barbárie, as mulheres palestinas têm não só seus corpos instrumentalizados como símbolo de resistência, mas seu útero e o ato de dar à luz somam-se à essa luta.

Mulheres palestinas frente à autodeterminação e à paz 

Como visto, as mulheres palestinas tiveram papel chave nos movimentos anticoloniais da história palestina. Não obstante, no atual cenário essa resistência se mantém, ainda que de forma silenciosa ou pouco perceptível aos olhares ocidentais. 

Seja retratando a dura realidade nas redes sociais, exercendo a maternidade, mantendo alguma esperança e sobrevivendo aos bombardeios e a uma crise humanitária, elas se colocam na linha de frente de uma luta desigual, buscando serem ouvidas pelo mundo.

Diante de um complexo conflito e de uma ocupação que dura décadas, definir conclusões precipitadas e preconceituosas sobre as mulheres palestinas e seus movimentos de resistência seria, no mínimo, incoerente. Não apenas considerando que partimos de um ponto de vista ocidental, mas pelo fato de serem mulheres heterogêneas. São mulheres que lutam contra o colonialismo e por sua sobrevivência há quase um século, seja em organizações políticas e movimentos pacíficos – principalmente -, em movimentos armados como socorristas ou combatentes, a partir da arte e da cultura, da educação, com seus corpos ou exercendo a maternidade, a mulher palestina é plural e politizada.

De alguns insights que podemos obter, porém, cabe destacar o fato de que suas vidas, corpos, visões, lutas, movimentos e feminismos estão intrinsecamente conectados ao conflito palestino-israelense. Logo, sua resistência existe de variadas formas, e com ‘armas’ distintas. Analisar o conflito implica analisar os movimentos históricos de luta dessas mulheres, de autodeterminação e libertação, que se co-constituem. Portanto, analisá-las também significa analisar esse complexo e histórico conflito. 

Da mesma forma, para se alcançar a paz – que parece estar em um horizonte distante – é necessário não só olhar para essas mulheres e colocá-las no centro das negociações, como vítimas, mas ouvi-las ativamente. Uma vez que sua existência está em jogo e estão nas diversas frentes do conflito, elas devem e têm o direito de participar ativamente dos processos de resolução e construção da paz. 

 

Sobre a autora: Cecília Delfino é bacharel em Relações Internacionais e voluntária da Elas no Poder e no Refúgio 343.

 

Referências: 

BARKAY, Rafaela. Nenhuma Mulher Será Livre até que Todas as Mulheres Sejam Livres: um olhar sobre o conflito israelense-palestino sob o prisma feminista. Revista Psicologia Política, online. v.16, n. 35, 2016, p. 53-70.

CARLETTI, Anna; ABDALLAH, Ayat Yaser Said. A violência de gênero e a resistência das mulheres na luta nacional pela Palestina. Meridiano 47: Journal of Global Studies, Universidade de Brasília, v. 23, 2022. Disponível em: http://dx.doi.org/10.20889/M47e23009.

DANIELE, Giulia. Movimentos de mulheres na Palestina e em Israel: Práticas, lutas e desafios internos. Janus, 1.29, 2020-2021.

HOLT, M. C.. Resistance narratives: Palestinian women, Islam and insecurity. WestminsterResearch, University of University of Wesminter, 2015. Disponível em: http://westminsterresearch.wmin.ac.uk/.

KUTTAB, Eileen. The Palestinian Women’s Movement: From Resistance and Liberation to Accommodation and Globalization. Vents d’Est, vents d’Ouest: Mouvements de femmes et féminismes anticoloniaux. Graduate Institute Publications, Genebra, 2009.

MOHANTY, Chandra Talpade. Feminism Without Borders: Decolonizing Theory, Practicing Solidarity. Duke University, Durham e Londres, 2003.

MOHANTY, Chandra Talpade. Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses. Feminist Review, n. 30, 1988, p. 65-88.

MUÑUMER, Hanady Awni Muhiar. El papel de la mujer en la construcción del Estado palestino. Tese de Doutorado em Ciências Políticas e Sociologia junto ao Departamento de Direito Internacional Público e Relações Internacionais da Universidad Complutense de Madrid, 2015.

OCHÔA, Natália Morari. Sobre Mulheres e Lutas: Uma análise pós-colonial dos movimentos de mulheres palestinas. Revista InterAção – Dossiê História Cultural e Imaginário Ocidental sobre o Oriente, v. 11, n. 2, Jul/Dez 2020.

PETEET, Julie M. Gender in Crisis: Women and the Palestinian Resistance Movement. Nova York, Columbia University Press, 1991.

WADI, Shahd. A explosão dos úteros: Mulheres palestinas entre o patriarcal e o colonial. ex æquo, n. 22, 2010, p. 77-94.

WADI, Shahd. Feminismos de corpos ocupados: as mulheres palestinas entre duas resistências. Dissertação de mestrado em Estudos Feministas. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009. 

https://www.unwomen.org/en/news-stories/statement/2023/11/we-need-an-immediate-humanitarian-ceasefire-statement-by-principals-of-the-inter-agency-standing-committee-on-the-situation-in-israel-and-the-occupied-palestinian-territory.

https://www.aljazeera.com/news/2023/11/7/one-month-of-no-water-food-and-healthcare-for-gaza.

https://www.gendersecurityproject.com/post/comrade-sisters-women-and-armed-resistance-in-palestine.

https://www.opendemocracy.net/en/north-africa-west-asia/role-of-palestinian-women-in-resistance/.

https://www.aljazeera.com/opinions/2018/10/25/palestinian-women-an-untold-history-of-leadership-and-resistance/.

https://www.cartacapital.com.br/mundo/devemos-nos-inspirar-na-resistencia-da-mulher-palestina/.

https://nakedpolitics.co.uk/2018/06/18/palestinian-women-a-history-of-resistance/.

https://www.newarab.com/opinion/iwd-remembering-palestinian-womens-resistance.

https://icarabe.org/node/2977

De 1 a 10, quanto você recomendaria esse conteúdo?

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Enviando avaliação...

Comentários (0)

Escreva um comentário

Mostrar todos