Financiamento de campanha: uma perspectiva de gênero

Giulia Goveia

voluntária da Elas

16/10/2024

As políticas destinadas ao combate à desigualdade de gênero desempenham um papel crucial na manutenção das mulheres nos espaços de poder político. Nesse contexto, o financiamento de campanhas eleitorais emerge como um instrumento fundamental, proporcionando-lhes o suporte necessário para que seja possível acessar o espaço político institucional.

Historicamente, as mulheres têm conquistado seus direitos políticos após os homens, refletindo um padrão de exclusão e controle masculino em diversas sociedades, incluindo o Brasil. Por exemplo, o Código Eleitoral de 1932, que garantiu o sufrágio feminino em todo o Brasil, apenas dispôs sobre o direito de voto opcional das mulheres, refletindo o controle masculino dentro das famílias. Já em 1946, apesar de o voto feminino ter se tornado obrigatório, restrições como a exigência de alfabetização, vigente até 1988, excluíam mulheres racializadas e de classes socioeconômicas mais baixas, enquanto favoreciam mulheres brancas das elites. 

Apesar dessas conquistas, a representação feminina permaneceu baixa até o final do século XX. Medidas como as exaradas nas Leis nº 9.100/95 e 9.504/97, as quais  exigiam, respectivamente, 20% e 30% de candidaturas femininas em cada partido ou coligação nas eleições proporcionais, não foram suficientes para aumentar significativamente a presença feminina nas disputas eleitorais.

Em 2009, a legislação eleitoral foi alterada para reservar 30% das vagas para mulheres nas listas eleitorais, o que levou a um aumento das candidaturas femininas para um pouco acima de 20% no ano seguinte. No entanto, os avanços permaneciam moleculares. Somente em 2014 o percentual mínimo de 30% de candidaturas femininas foi alcançado nas eleições brasileiras.

 

FINANCIAMENTO DE CAMPANHA PARA MULHERES

Em 2018, o Poder Judiciário determinou que 30% dos recursos do Fundo Partidário, do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de rádio e televisão deveriam ser reservados para candidatas, marcando uma judicialização da política para enfrentar desigualdades de gênero. 

Em 2020, uma nova modificação na legislação eleitoral foi realizada: a determinação da divisão proporcional entre mulheres brancas e pretas no que diz respeito aos recursos públicos advindos do Fundo Partidário, do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e o tempo de rádio e televisão destinado às candidatas.

Mais recentemente, em 2021, foi também promulgado o Projeto de Lei Complementar (PLP) 112/2021. Este apresenta-se como um novo Código Eleitoral, propondo uma consolidação da legislação suplementar e inserindo modificações no sistema político atual. Em direção similar, a Proposta de Emenda Constitucional (PEP) nº 28 delibera acerca de alterações para fins de reforma político-eleitoral.

Um ponto em comum entre as duas proposições foi a inclusão da contagem em dobro dos votos, no caso da PEP, e dos mandatos, no caso do PLP, recebidos por postulantes à Câmara, para fins de distribuição do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – válido para os pleitos eleitorais realizados entre 2022 e 2030. No entanto, no caso da PEP, haveria o cômputo em dobro dos votos dados a mulheres, negros e indígenas.

Por seu turno, no caso do PLP, seriam computados em dobro os mandatos conquistados por mulheres e pessoas negras, excluindo as/os candidatas/os indígenas. Apesar do caráter reparatório das medidas, estas demonstram-se ainda insuficientes, ao passo que não levam em consideração as intersecções de dominação de raça e gênero na sociedade.

Nas eleições de 2022, o número de deputadas federais aumentou para 91, representando 17,7% da Câmara. Apesar de ser um recorde, a sub-representação persiste. A partir de 2023, enquanto homens brancos ocuparam 61% das cadeiras, mulheres negras ocuparam apenas 6% das cadeiras, apesar de representarem 28,6% da população.

 

FINANCIAMENTO DE CAMPANHA E REPRESENTAÇÃO DE MULHERES: ENTENDENDO OS PORQUÊS

No âmbito do financiamento e da representação de mulheres, podemos destacar alguns fatores principais para além da própria estrutura que privilegia o masculino. A priori, um desafio significativo são as candidaturas “laranjas”, prática de partidos de incluir nomes femininos nas listas eleitorais apenas para cumprir as exigências legais, sem fornecer os recursos financeiros ou apoio necessários para suas campanhas. 

O principal problema orçamentário, no entanto, está na distribuição desigual dos fundos partidários para campanhas, frequentemente associado à predominância masculina nas esferas diretivas dos partidos (Meneguello et al., 2012).

Esses fatores estão ligados à divisão sexual do trabalho, que perpetua a dicotomia entre o homem provedor e a mulher cuidadora (Guedes, 2016), mantendo as mulheres em papeis de cuidado e reservando para os homens o espaço público, onde podem obter cargos de poder e influência e atrair financiadores para suas campanhas políticas.

Essa tendência também se relaciona com a maior probabilidade de um homem ser eleito em comparação com uma mulher, dada a cultura brasileira que define papeis específicos para cada gênero. Esse ponto é ainda mais relevante quando se considera que até mesmo as mulheres que concorrem à reeleição, ou seja, aquelas com capital político acumulado, enfrentam desigualdades na alocação de recursos (Sacchet e Speck, 2012).

Consequentemente, as chances de sucesso das candidaturas femininas são ainda mais reduzidas, visto que campanhas eleitorais exigem orçamento para todas as suas atividades, desde a distribuição de material promocional até a criação de estratégias de marketing. Portanto, existe uma “forte correlação entre o financiamento eleitoral e o desempenho dos candidatos” (Sacchet; Speck, 2012, p. 183), especialmente no sistema de lista aberta, que se concentra na imagem individual de cada candidato.

Logo, uma possível solução para combater a sub-representação feminina e garantir uma distribuição mais equitativa de recursos seria a implementação de mecanismos mais rígidos de fiscalização dos partidos no uso dos fundos de campanha. Além disso, é crucial o fortalecimento de iniciativas que promovam a transparência no financiamento de campanhas, permitindo que os recursos destinados às candidaturas femininas sejam monitorados de forma pública e acessível.

Tais medidas precisam considerar as interseccionalidades de gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero, garantindo acesso a financiamentos adequados àquelas mulheres que são ainda mais impactadas pelas desigualdades no sistema político. 

 

Sobre a autora: Giulia Gouveia é do Time de Pesquisa da Elas No Poder. Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais (UFRRJ), Pesquisadora em Ciência Política e Gênero.

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