Elas Entrevistam: Potyra Tê Tupinambá e as mulheres na luta indígena

Clara Prado

voluntária da Elas

27/06/2021

Com as manifestações indígenas contra o PL 490/2007 que estão ocorrendo, entrevistamos a advogada indígena Potyra Tê Tupinambá da terra tupinambá Olivença, localizada em Ilhéus (Bahia). Potyra Tê é responsável pela página @pelasmulheresindigenas.

É formada em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, e há mais de 15 anos vem trabalhando com educação e capacitação de povos indígenas. Desde 2019, seu trabalho é focado exclusivamente em mulheres. Atua com assessoria jurídica para mulheres indígenas, auxiliando os povos com documentações e outras tarefas.

Potyra Tê Tupinambá e as mulheres na luta indígena

Quais as principais lutas do acampamento Levante pela Terra hoje?

No Levante pela Terra, várias lideranças indígenas do Brasil estão agora em Brasília, todas já imunizadas contra coronavírus, para afirmar que vidas indígenas importam e solicitar o arquivamento de vários PLs de morte como o PL 490, que foi aprovado na Câmara dos Deputados pela comissão de Constituição, justiça e cidadania que agora vai para Plenário.

Esse projeto retira vários direitos já conquistados e é inconstitucional. Sendo apenas um dentre outras, mais informações no Manifesto do levante pela terra. Enfim, a principal luta é para a nossa sobrevivência. 

Qual o impacto da demarcação de terras na vida dos indígenas?

Demarcar territórios tradicionais é fazer justiça histórica. Quando o Brasil foi invadido esta terra pertencia a nós indígenas, a milhares de comunidades e povos indígenas. Demarcar é colocar em prática a constituição federal do Brasil, é fazer justiça, é nos trazer paz.

Nós, Indígenas, não temos paz. Meu povo não está com território demarcado, nossa terra está em processo de demarcação. A gente vive em constante conflito e medo. Eu moro em uma retomada, uma aldeia chamada Itapuã. Ao lado tem um vizinho que é contra nossa presença, que manda pistoleiros e nos agride.

Sem demarcação, vivemos sob ameaça, acuados. Ter a terra demarcada nos traria segurança. Não só para nós, mas para toda a sociedade nesse entorno. 

Quais as consequências do PL 490/2007 para o Brasil na visão indígena?

O PL 490 foi aprovado com 40 votos a favor e 21 contra pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Isso é inconstitucional, um retrocesso. Nega direitos e coloca o capital acima das nossas vidas. Coloca o agronegócio acima da nossa mãe natureza que nos dá abrigo.

Isso é uma sentença de morte para as comunidades indígenas, é um exemplo de tudo que a gente já sofre a 521 anos. Sempre resistimos, lutando e insistindo, pois devemos isso aos nossos antepassados.

Esse PL 490 busca mudar a forma de demarcação de terras indígenas, em outras palavras, para entregá-las para grileiros e garimpeiros. A PL tira nossos direitos garantidos na constituição federal de 1988, é uma injustiça desumana e assustadora. A gente nunca deixou de lutar, vamos continuar buscando nossos direitos. Sabemos que as minorias sofrem para terem seus direitos respeitados e estamos na luta para sermos respeitados.

O meu povo estava também em Brasília, ficaram durante uma semana e retornaram à Bahia.Temos nossos parentes indígenas brasileiros de várias regiões gritando por nós. Muitos foram até agredidos e saíram carregados no dia 21/06 apenas por lutar pelos seus direitos. 

Qual é o papel das mulheres na luta indígena?

Mulheres têm papel fundamental dentro da luta indígena, Têm muita sabedoria. Vimos participação feminina em massa nas manifestações, entregando flores e cantando para os policiais mesmo eles nos ameaçando. Dentro do nosso processo histórico mulheres sempre tiveram um papel fundamental nas lutas do movimento indígena.

Não posso falar por todos os povos porque nós somos diversos. No meu povo, Tupinambá, temos mulheres muito fortes e fundamentais. Nossa primeira cacique do Povo Tupinambá de Olivença é uma mulher chamada Valdelice Tupinambá que tem um papel fundamental. Nossa luta pelo território se iniciou com as mulheres se posicionarem e buscarem direitos.

Nós temos diversas mulheres líderes aqui no nosso território, até mesmo outras caciques. Essa quebra de ciclos com a representação feminina como cacique na nossa aldeia foi difícil, no início Valdelice era a única mulher no grupo regional.

Ela foi aprendendo, sendo e demandando respeito. Hoje ela é uma das grandes lideranças brasileiras e super respeitada pela sua forma de lidar com problemas, com pulso firme e amor.

Como resolver a falta de representatividade indígena nos espaços de decisão?

Temos de tomar consciência, não só os indígenas, de que os espaços de poder como o legislativo e executivo são lugares importantes que precisamos acessar enquanto movimento. Temos de estar lá no topo das decisões, pois de baixo está sendo cada vez mais difícil. Temos aliados, mas poucos que possam falar por experiência própria.

Hoje temos uma única indígena na Câmara dos Deputados, Joênia Wapichana, uma mulher guerreira e advogada, mas ela não basta, precisamos ter mais mais indígenas em vários âmbitos do poder. O meu povo hoje tem um representante da câmara de vereadores de nossa cidade, Claudio Magalhães. Uma conquista do Povo Tupinambá: temos alguém na ativa dando voz aos nossos sentimentos. Enquanto movimento indígena, precisamos votar nos nossos parentes para sermos representados.

 

Por que a transferência de poder para as demarcações de terras do governo federal para o congresso seria ruim? Como a Funai se envolve nesse debate?

Transferir o poder de demarcação da terra que hoje está com a Funai e o Ministério da Justiça para o Congresso Nacional é dizer que não se vai mais demarcar terras no Brasil. Hoje a Funai tem autonomia para demarcar. Precisando apenas da carta declaratória que o Ministro da Justiça assina para completar o processo. Com isso, tem-se autonomia para estudos antropológicos, para fazer relatório de alimentação, e transferindo essa responsabilidade para o Congresso Nacional não haverá mais demarcação de terras indígenas no Brasil. Isso é uma ameaça muito grande.

Sabemos que a maioria do Congresso é antiindígena, sendo este cada vez mais dominado pelo agronegócio que não têm interesse em demarcar terras indígenas. Querem justamente as nossas terras para poder fazer os seus empreendimentos. Sabemos que a Funai está fraca e falida, tendo muita gente dentro da organização que é antiindigena. O próprio presidente da Funai, Marcelo Xavier, militar anti-indígena.

Hoje, não podemos mais contar com a Funai. Como é que ela vai se envolver nesse debate para defender indígenas se ela perdeu totalmente seu caráter. O decreto que criou a Funai tem como princípio defender as comunidades indígenas e seus direitos. Hoje, a Funai que uma vez feita para nos defender age como nossa inimiga. 

Não podemos permitir que essa mudança aconteça. Precisamos lutar para que a demarcação continue com a Funai mesmo ela estando enfraquecida pois sabemos que isso é transitório, governos mudam. Ainda vamos ter dias melhores. Vamos ter a Funai mais atuante que cuide dos nossos interesses e direitos. Para suprir a falta da atual Funai, o movimento indigena criou organizações que acompanham os processos de demarcação. Temos vários indígenas advogados especializados em questões indígenas para acompanhar a defesa de nosso território independentemente da Funai.

O autor do PL, Arthur Oliveira Maia (DEM/BA), argumenta que “a Funai vê-se compelida a exercer seu juízo discricionário sobre questões complexas que extrapolam os limites de sua competência administrativa”, para falar que demarcação das terras indígenas ultrapassa os limites da política indigenista e atinge interesses diversos da economia. Qual sua opinião sobre esta declaração?

A declaração desse cidadão é para defender seus interesses. Defende o agronegócio e o interesse do capital, descredibilizando a FUNAI que há anos vem fazendo essa demarcação com profissionais super competentes que atuam nessas questões há anos. Usa-se argumentos para defender seus interesses em cima dos nossos territórios, da nossa casa.

 

Por que o marco temporal sugerido pelo PL 490, que afirma que povos indígenas só teriam direito à demarcação daquelas terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988 é argumento de debate? 

O marco temporal é uma invenção. Ele diz que os indígenas só teriam direito a reivindicar seus territórios se estivessem em outubro de 88 já dentro do seus territórios e lutando por seus interesses. Só que sabemos que nessa época estávamos saindo de uma ditadura onde morreram mais indígenas do que brasileiros, o relatório Figueiredo prova todas as atrocidades cometidas contra indígenas.

Inclusive esse relatório ficou escondido durante muitos anos e foi encontrado recentemente. O marco diz que que o índio que não estava lutando nesse período não tem direito a terra, quando a verdadeira história mostra a perseguição e massacre indigena. Não havia possibilidade dos indígenas lutarem, tínhamos de ficar escondidos para não morrer. 

O trauma é tão grande que até recentemente quando a antropóloga Susana Viegas veio estar aqui meu povo ela teve muita dificuldade de ouvir as pessoas. Nossos anciãos não queriam falar, tinham medo. Pois durante a ditadura éramos enterrados vivos, língua cortada, orelha cortada e mão cortada. O livro que ela fez com base nesse relatório, Terra calada, mostra esse trauma.

Esse marco temporal é injusto, o que deve valer é a nossa Constituição Federal, nosso direito originário ao território. Quando o Brasil foi invadido nós já estávamos aqui. Eu sou fruto dos meus antepassados. O marco é uma grande invenção para tentar tirar nossos direitos, tomar os territórios e destruir a natureza.

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