No Brasil, descriminalização do aborto regride enquanto países vizinhos celebram avanços

Fernanda Paixão

voluntária da Elas

23/09/2021

Neste mês de setembro, a Suprema Corte do México descriminalizou o aborto em todo o país. Tal ação torna possível que estados avancem na legislação sobre o tema. Dessa forma, o México se torna membro de um seleto grupo de países da América Latina que reconhecem, legalmente, a desistência da gravidez em qualquer situação como um direito da mulher e um direito humano. Isso é motivo de comemoração para o dia 28 de setembro, Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe.

Desistência é um termo ruim, afinal, nem toda gravidez é uma escolha. Ela só é uma escolha se o casal, ou mãe solo, planejam ter um filho. Estupro ou gravidez fruto de falha de métodos contraceptivos não estão inclusos nisso. Vamos tratar pelo nome que é: interrupção.

A interrupção da gravidez em qualquer situação durante as primeiras semanas só é possível em sete países: Uruguai, Cuba, Guiana, Guiana Francesa, Porto Rico, Argentina e México. Em outros há legislações mais restritivas, condicionando o processo à violência sexual, risco de vida da mulher ou anencefalia, ou mesmo proibindo qualquer circunstância. No Brasil, só é possível abortar nessas 3 situações. Em caso de estupro, é solicitada uma comprovação (um boletim de ocorrência na maioria dos casos) – embora a lei não exija.

A descriminalização 31 anos depois da primeira campanha

O Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe foi estabelecido em 1990, durante o 5º Encontro Feminista Latino Americano e Caribenho, na Argentina. O objetivo é ampliar o debate e a concientização da população sobre o aborto, os direitos reprodutivos, autonomia sobre o corpo e o acesso à saúde e procedimentos seguros. Por meio de ações coletivas, a campanha é feita em vários países da região todo o ano no mesmo dia. Três décadas depois, debater o tema ainda se mostra essencial. 

Entre 2020 e 2021, tivemos ótimos avanços, encabeçadas por Argentina e México. Espera-se para esse ano, uma aprovação de projeto de lei no Equador que descriminaliza a interrupção em casos de estrupo. Ler sobre mais países reconhecendo esse direito feminino tão polêmico é um alívio, mas acende uma luz de preocupação sobre a situação brasileira: o que os governantes estão fazendo sobre isso? A resposta não é otimista.

De acordo com o levantamento do Elas No Congresso feito em 2020, apenas um projeto de lei sobre a descriminalização do aborto tramita no Congresso (PL 882/2015), de autoria do deputado Jean Wyllys. Ele foi apensado ao PL 313/2007, que trata de planejamento familiar, fazendo com que o tema perca força. Essa mesma pesquisa mostra que há 69 PLs que buscam criminalizar a interrupção da gravidez.

O Conselho Nacional de Saúde aprovou em agosto de 2019 a Resolução nº 617, que garantia direito ao aborto legal no SUS, dando “assistência integral e humanizada à mulher”. O Ministro da Saúde Marcelo Queiroga revogou a resolução em agosto de 2021. Tudo isso só mostra o que já sabemos: o direito reprodutivo da mulher é uma barganha político-religiosa compartilhada até pela mais alta instância do Poder Executivo. 

Em julho, foi enviada ao Congresso uma proposta para criar o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto. Tal medida teve apoio do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. É uma forma de dar direitos ao feto e garantir o entendimento sobre vida após a concepção, a partir de uma visão cristã.

Aborto legal como política de saúde pública

Essa é a situação atual da mulher no Brasil. Não descriminalizar o aborto é continuar a permitir que cerca de 22 milhões de interrupções sejam feitas em condições inseguras, quando há muitas formas de garantir segurança física e mental. É permitir que cerca de 47 mil mulheres morram. Permitir problemas físicos e mentais em outras 5 milhões. E também contribuir para a desigualdade social, pois são as mulheres mais pobres que têm acesso às opções mais inseguras.  De acordo com a OMS, no manual Abortamento Seguro: Orientação Técnica e de Políticas para Sistemas de Saúde, isso gera “responsabilidade social e financeira para o sistema de saúde pública”.

Na prática, nenhuma das propostas leva em consideração a escolha de ser mãe, o direito ao próprio corpo, o direito de não relembrar uma situação de violência, o direito à adolescência. Nem mesmo a condição mental ou financeira das mulheres e suas famílias. Na prática, a maternidade é tratada como punição, enquanto o discurso político diz o contrário. 

Qual seria a melhor forma de combater os riscos do aborto se não dar acesso à saúde às mulheres brasileiras? Para a sociedade pautada pelo conservadorismo, qualquer coisa é melhor que a descriminalização. Até mesmo a prisão. Já passou da hora de parar de fingir que o problema de saúde pública não existe. 

Em 2022, o aborto será novamente pauta eleitoral. E as mesmas desinformações serão usadas como argumentos. É preciso ficar atenta quanto às tentativas de revogação de direitos femininos ou recrudescimento de medidas atuais. Mas para este dia 28 de setembro de 2021, só nos resta continuar a lutar pelo direito ao debate no Brasil enquanto celebramos e nos inspiramos nas vitórias vizinhas.

 

Texto de Fernanda Paixão, carioca, 24 anos. É jornalista freelancer, social media e empreendedora. Apaixonada por tudo que envolva política e mulheres.

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