coordenadora da Elas
08/04/2021
Por meio de uma vivência correta dos lutos atuais, podemos reescrever nossas narrativas do sofrimento, transformando-os em demandas de reconhecimento e políticas de acolhimento com as quais restabelecemos instituições democráticas e elos sociais mais fortes e saudáveis no país. Há que se ter afeto no Brasil.
Há um certo consenso quanto aos problemas “em comum” que viemos enfrentando como sociedade brasileira desde, ao menos, o início da pandemia da Covid-19. Com o isolamento social, as estruturas de afeto básicas tentaram se adaptar à realidade virtual das interações interpessoais: lives, videochamadas e flerte online em lugar do tato, da troca. Buscamos estratégias de sobrevivência a um período que se estende ainda indefinidamente diante de nós.
Sobrevivemos também por processos de luto. Os vários mil lutos diários, decorrentes do novo coronavírus, e lutos imaginários, de estruturas várias que nos eram familiares, conhecidas, queridas. Chorar a perda da estabilidade, da segurança, de um horizonte. Perdemos muitos vínculos desde março do ano passado. Essa ruptura do toque, dos encontros, é sentida em uma tonalidade depressiva coletiva. E esse luto tem de ser vivido do jeito correto.
Do contrário, seguimos construindo sociedades de homens incapazes emocionalmente, mulheres que tomam o luto como ofício de vida dali em diante, e representantes políticos imaturos e irresponsáveis que exaltam regimes militares e suas matanças atrozes. Em meio a tantos negacionismos predatórios, a rejeição do processo de luto vira um problema a mais para a saúde do brasileiro e para as estruturas de afetos sociais.
O luto é o processo de experiência da perda, de seu sofrimento, mas também de sua simbolização. Alguns consideram que o luto se dá em cinco fases: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Nesta última, despedir-nos de algo ou alguém que se foi envolve incorporá-lo simbolicamente, torná-lo parte de nós. Reconstruímos histórias de fracasso em sucesso, e essa transmissão simbólica da experiência é, segundo Freud, a gênese da cultura.
A experiência desses sofrimentos altera-se à medida em que é narrada, transmitida, e com o tempo vê-se que há mais sofrimentos do que formas sociais de seu reconhecimento. Faz-se política, aqui, ao se gerar novas demandas de reconhecimento. De fato, segundo Zizek, ao fracassarmos em fazer o luto, empobrecemos nossa imaginação política. Narramos, ouvimos e elaboramos sobre a experiência da perda como processos culturais e políticos.
A transmissão simbólica das nossas experiências e as demandas políticas de reconhecimento de afetos são ferramentas coletivas essenciais de aperfeiçoamento de nossos laços sociais e de nossas instituições democráticas. Contribuem, assim, para nossa sobrevivência como espécie, e se constroem a partir do luto.
Assim se procura fazer após ditaduras militares na América Latina, com a Justiça Transicional, reunião de instrumentos para confrontar e reparar violações de Direitos Humanos cometidas por regimes de poder repressivos. Sob os seus Direitos à memória, verdade e justiça, dá-se voz a essas narrativas e se reconhece pública e oficialmente o sofrimento. Reconhecendo e acolhendo a dor do outro, assimilamos melhor nossa história de nação e vivemos lutos pessoais mais saudáveis.
A heroína, em sua jornada, almeja o “Hieros Gamos”, o equilíbrio perfeito entre masculino e feminino. Recebe a completude ao aceitar a sua essência, reconhecendo as feridas, abençoando-as e as deixando ir. Esse é também o processo do luto. Render-se ao luto, e fazer isso coletivamente, é se reconciliar como sociedade, e praticar, contra uma política do medo – que Christian Dunker diz ser o afeto da ordem, do egoísmo e da covardia moral -, uma política de reconhecimento e amparo.
A artista Tati Rossi diz que a paz dorme no mistério mais bonito da gente; que o estado de paz está intimamente ligado ao enigma que lhe funda. Nosso país, nosso corpo-pátria também é um corpo de paz e amor latentes; mas temos que restabelecer nosso mito fundacional, e é vital fazer isso por um trabalho de assimilação das feridas, reparação e reconstrução simbólica do que foi perdido.
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