Avanço das políticas de gênero na Argentina: vamos aprender com nossas hermanas?

Marcela Ciarlini

voluntária da Elas

03/07/2022

São poucos os países que preservam com tanto orgulho como a Argentina a memória de mulheres que realizaram feitos importantes na sua história.

Enquanto muitas vezes a essas mulheres resta o apagamento de seus nomes dos livros didáticos ou pelo menos a atenuação de seus atos, para os argentinos e argentinas alguns nomes femininos são talvez os maiores símbolos nacionais de resistência e força.

Se pode dizer que elas “representam muito mais a Argentina do que futebol e tango”. 

Acompanhe para entender a importância do reconhecimento das mulheres e os avanços das políticas de gênero na Argentina.

Sobre a importância do reconhecimento das mulheres e o avanço das políticas de gênero

Eva Perón logrou ser reconhecida por muitos mais do que meramente “primeira-dama” do governo de Juan Domingos Perón.

Era uma grande defensora de direitos trabalhistas e civis, liderou grandes manifestações populares (inclusive a que marcou o Dia da Lealdade Peronista), foi a principal articuladora da lei do sufrágio feminino e da igualdade de direitos políticos (chamada de Lei Evita), e teve papel central na criação de programas gratuitos de saúde e educação para a população vulnerável através da Fundação Eva Perón.

Era tão amada que o seu velório durou mais de 10 dias e até hoje é reconhecida como grande defensora dos direitos do povo argentino.

Mães da Praça de Maio: pela memória de seus filhos e filhas

Alguns anos depois, durante a ditadura militar que ocorreu no país, foi a vez das Mães da Praça de Maio.

Esse grupo de mulheres teve filhos e filhas desaparecidos/as ou que assassinados/as pelos militares e passaram a realizar marchas na Praça de Maio, onde se encontra o prédio do governo nacional em Buenos Aires.

Enquanto usavam panos brancos na cabeça para representar fraldas em memória de seus filhos, demandavam informações e acusavam os militares de violações de direitos humanos.

Foram perseguidas e algumas também torturadas e mortas, mas não pararam de lutar pelo fim da ditadura militar.

Hoje chamadas também de Avós da Praça de Maio, se mantêm como movimento organizado em busca de informações sobre os/as jovens desaparecidos/as e lutam por outras pautas importantes, especialmente relacionadas a gênero. 

A luta não é à toa: as mulheres fazem política 

Esse contexto de reconhecimento de figuras femininas como relevantes e meritórias para a história da política e da defesa dos direitos fundamentais no país abriu espaço para que, alguns anos após a redemocratização, o país viesse a ser pioneiro no mundo em relação aos direitos políticos de mulheres, criando cotas femininas para as eleições em 1991 (implementadas em 1993).

Mesmo ainda enfrentando resistências, mulheres de diferentes convicções políticas à época se uniram para obter a aprovação do projeto que tornava obrigatória a apresentação de ao menos 30% de candidaturas femininas por cada um dos partidos participantes do pleito eleitoral.

Em 2017, novos passos foram dados com a Lei de Paridade de Gênero em Ámbitos de Representação Política (Lei nº 27.412/17), que obriga que as listas de candidaturas apresentadas pelos partidos devem ter alternância sequencial de gênero.

Políticas de gênero na Argentina hoje

O país ainda enfrenta muitos desafios sociais relacionados a questões de gênero, mas atualmente com uma representação feminina próxima de 44% no seu Congresso Nacional e também a vice-presidência ocupada por uma mulher, tem implementado nos últimos anos diversas políticas de garantia de direitos, reparação histórica e combate à violência que vale a pena conhecer.

Aborto voluntário legal, seguro e gratuito

Em 2020, o senado argentino aprovou a Lei de Interrupção de Gravidez (Lei nº 27.610/21), que garante o acesso ao aborto voluntário, seguro e gratuito até a 14ª semana de gestação através da rede de serviços públicos e privados de saúde do país.

Depois desse período, é possível realizar o procedimento somente se a gravidez for resultado de violência sexual ou se há risco de vida ou à saúde da pessoa gestante, mas a lei garante o acesso a cuidados “pós aborto” inclusive para as pessoas que realizarem o procedimento sem habilitação legal.

Além disso, estabelece como condições mínimas: o trato digno, a privacidade, a confidencialidade, a autonomia da vontade, o acesso à informação e a qualidade do procedimento.

Foi uma enorme vitória da Campanha Nacional organizada por movimentos feministas há quase 20 anos e representada pelos “pañuelos verdes” – em memória dos panos brancos utilizados pelas Avós/Mães da Praça de Maio – que defende “educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal para não morrer”. 

Lei de Atenção e Cuidado Integral da Saude durante a Gravidez e a Primera Infância (Plano 1000 Dias)

Embora menos conhecida, uma política de suporte para pessoas gestantes foi aprovada pelo Congresso argentino junto com a lei de legalização do aborto.

Uma vez que os 1000 primeiros dias de vida são considerados cruciais para o desenvolvimento de uma criança, a Lei 27.611/21 designa apoio financeiro e material para garantia de acesso aos recursos necessários para o cuidado até que a criança complete 3 anos de idade.

O Plano 1000 Dias envolve um conjunto de programas como:

  • Subsídio por Cuidado Integral;
  • Aumento de tempo e valor de outros benefícios para pessoas gestantes em situação de vulnerabilidade (Subsídio por Gravidez e Subsídio por Nascimento/Adoção);
  • “Complemento Leite”, que é um auxílio para garantia da alimentação saudável;
  • Acesso aos serviços de saúde essenciais, inclusive vacinas e remédios; assistência e acompanhamento em casos de violência de gênero;
  • Acesso a creches e outros espaços de aprendizagem; garantias relacionadas à identidade; e também acesso à informação. 

Esses dois projetos aprovados no dia 30 de dezembro de 2020 – aborto voluntário seguro e Plano 1000 Dias -, juntos, garantem verdadeiramente o direito de escolha, evitando que qualquer pessoa tenha que seguir com uma gravidez indesejada ou interromper uma gravidez desejada por outro motivo que não seja sua própria vontade.

Além disso, é importante destacar que esses e outros projetos com temas similares se destinam a “pessoas com capacidade de gestar” ou “mulheres e pessoas com outras identidades de gênero”, reconhecendo que também homens trans e pessoas não binárias são capazes de engravidar e, por isso, devem ter acesso aos mesmos direitos e cuidados que mulheres cis. 

Programa Integral de Reconhecimento de Períodos de Contribuição por Tarefas de Cuidado

Em reconhecimento da desigualdade histórica da divisão dos trabalhos do cuidado e em busca de reparar seus efeitos, foi permitida a complementação dos anos necessários de serviço para fins de recebimento de aposentadoria para mulheres e/ou pessoas gestantes.

O Decreto nº 475/2021 da ANSES, órgão público responsável pela Seguridade Social na Argentina, agora concede ao menos 1 ano a mais na contagem do tempo mínimo para recebimento do benefício a cada filho e/ou filha nascido vivo ou adotado menor de idade, além de contar também o tempo de licença maternidade como tempo de serviço para o mesmo fim.

À época de lançamento do programa, a ANSES calculava que em torno de 155.000 pessoas seriam beneficiadas já no seu primeiro ano. 

Obrigatoriedade de creches gratuitas em empresas 

A partir da emissão do Decreto nº 144/2022, empresas com 100 funcionários ou mais têm até 1 ano para oferecer espaços de cuidado para crianças de 45 dias a 3 anos de idade em seus estabelecimentos.

A norma considera para a contagem mínima de trabalhadores e usufruto de seus benefícios inclusive aqueles funcionários que são dependentes de outras empresas, mas prestam serviços no local, como terceirizados.

Caso queiram, as empresas podem escolher alternativamente por realizar o pagamento mensal de um valor referente à contratação de serviços domiciliares de cuidado para os seus trabalhadores com filhos e/ou filhas na já indicada faixa etária, desde que o valor pago corresponda, no mínimo, a 40% do salário definido para a categoria de Assistência e Cuidado de Pessoas pela legislação reguladora do país.

O não cumprimento do decreto implica em “Infração Laboral Muito Grave” e pode ser sancionada com multa de até 2000% por cada trabalhador/a afetado/a.

Capacitação obrigatória em gênero no serviço público

A Lei nº 27.499/2019 (Lei Micaela) torna obrigatória a capacitação anual em gênero e violência de gênero para todas as pessoas que exercem funções públicas no país.

Os três poderes – executivo, legislativo e judiciário – devem oferecer as capacitações e estas devem ser certificadas pelo Ministério de Mulheres, Gênero e Diversidade, órgão que também é obrigado a elaborar e publicar relatórios anuais acerca do alcance da política.

A falta de capacitação injustificada é considerada falta grave e pode resultar em sanção disciplinar. 

O nome da Lei Micaela foi escolhido em tributo a Micaela García, que era militante dos movimentos feministas Evita (em referência a Eva Perón) e Ni Una a Menos.

A jovem de apenas 21 anos foi violentada sexualmente e assassinada em 2017, por um homem que cumpria pena em liberdade condicional há menos de 1 ano pelo estupro de outras duas mulheres. 

Cotas para pessoas trans e travestis no serviço público

Em 2022 também foi aprovada a Lei nº 27.636/22, que estabelece que o quadro de servidores de todos os entes públicos do país devem ter ao menos 1% de ocupação por pessoas travestis, transgênero e transexuais.

Também oferece benefícios tributários para empresas privadas a cada pessoa trans ou travesti contratada.

A chamada Lei de Promoção do Acesso ao Emprego Formal para Pessoas Travestis, Transexuais e Transgênero “Diana Sacayán – Lohana Berkins” se baseia nas dificuldades enfrentadas pelas pessoas que se reconhecem nessas identidades de gênero para estudar e entrar no mercado de trabalho, e pretende combater a continuidade deste ciclo de desigualdades.

Vale ressaltar que a lei não exige a realização de retificação de nome e/ou gênero, nem realização de procedimentos de reposição hormonal ou redesignação sexual para reconhecimento das identidades auto percebidas. 

A Lei leva o nome de duas grandes ativistas travestis argentinas.

Diana Sacayán era indígena e fez parte do Partido Comunista, participando ativamente na modificação de políticas públicas que afetavam populações vulneráveis e na elaboração de novas políticas de garantia de direitos, especialmente a Lei de Identidade de Gênero (outra legislação argentina pioneira no mundo).

Infelizmente teve sua vida interrompida violentamente aos 39 anos e o julgamento de seu assassinato foi o primeiro a ser reconhecido como tranvesticídio pela justiça do país. 

Lohana Berkins foi a primeira travesti argentina a ter um emprego estatal, como assessora legislativa, e chegou a se candidatar a deputada federal em 2001.

Também foi fundadora de uma cooperativa gestionada por mulheres trans que tinha o objetivo de capacitar e oferecer oportunidades de emprego para pessoas em situação de prostituição ou sem trabalho formal.

Antes de seu falecimento, deixou uma carta em que dizia: “El tiempo de la revolución es ahora, porque a la cárcel no volvemos nunca más. Estoy convencida de que el motor de cambio es el amor”. (“O tempo da revolução é agora porque para a prisão não voltamos nunca mais. Estou convencida de que o motor para a mudança é o amor”)

E por que é importante saber das políticas de gênero na Argentina?

A realidade socioeconômica dos países da América Latina é muito próxima, portanto os seus desafios públicos também. Em uma rápida análise em relação aos problemas que ensejam as políticas públicas citadas acima, mas no contexto do Brasil, vejamos:

  • Em 2019 o SUS registrou uma média de 535 internações por aborto por dia. Destas, apenas 1% foram por abortos previstos em lei, já os outros 99% envolveram abortos espontâneos e tipos indeterminados de gravidez interrompida (Piauí);
  • Em 2021 foram registradas 1.556 internações de crianças entre 10 e 14 anos por aborto. Destas, apenas 8% haviam realizado procedimento por via legal (Folha). Vale ressaltar que todo ato sexual com crianças desta idade se enquadra como estupro de vulnerável, uma das causas amparadas por lei para o aborto, mas os casos recentes envolvendo uma juíza e uma promotora de justiça em Santa Catarina e comunidades religiosas em Recife demonstram as dificuldades de acesso ao procedimento mesmo quando legal;
  • Segundo o IBGE, em 2019 um percentual de 92.1% das mulheres afirmou ter realizado afazeres domésticos, enquanto para os homens a taxa foi de 78.6%. Além disso, mulheres dedicam 21.4 horas semanais para afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas, enquanto os homens dedicam apenas 11 horas;
  • Em 2019, apenas 37% das crianças de até 3 anos frequentavam creches no Brasil (Relatório PNE 2022) e esse dado corre forte risco de ter sido aprofundado em razão da pandemia;
  • Em 2021, 1.319 mulheres foram vítimas de feminicídio e 56.098 crianças e adultas do gênero feminino foram vítimas de estupros no Brasil (Fórum Brasileiro de Segurança Pública)
  • Segundo a ANTRA, 90% das mulheres trans no Brasil trabalham com prostituição (G1). A maior parte dessas mulheres não consegue seguir com estudos nem entrar no mercado de trabalho formal em razão da transfobia. Inclusive, a cada 10 pessoas trans assassinadas no mundo em 2021, 4 foram mortas no Brasil (ANTRA).

Caminhos possíveis Argentina-Brasil

Esses dados brasileiros são lastimáveis e precisam ser enfrentados com urgência.

A  Argentina oferece exemplos de políticas que podem ajudar no combate tais problemas e poderiam ser implementados no Brasil, contudo, há uma importante diferença a ser apontada: apenas 15% do Congresso Nacional brasileiro é composto de mulheres – mulheres negras não chegam nem a 3%, há apenas 1 mulher indígena, 1 mulher com deficiência e nenhuma mulher trans.

Na presidência há um homem que inúmeras vezes ofendeu abertamente mulheres, chegando a ser condenado pela justiça a pagar danos morais a uma das vítimas.

Até mesmo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos age em favor do retrocesso de pautas importantes de gênero. 

É necessário se inspirar na caminhada das hermanas argentinas e, assim como elas, alcançar um maior número de mulheres participando ativamente dos debates, da elaboração e da implementação de políticas públicas.

Mais mulheres eleitas, mais mulheres em espaços de decisão, mais pautas de gênero na agenda. Esse ano de eleições é momento chave para isso.

É preciso buscar as candidatas da sua região, dar apoio, propor projetos (que podem ser baseados nos da Argentina, por exemplo), divulgá-las e contribuir com suas campanhas.

Também é preciso cobrar dos homens que continuam ocupando grande parte dos espaços de poder para que trabalhem em prol do bem estar de toda a população, não só de seus pares.

E, por fim, é preciso ter esperança e apostar na mobilização popular – essa que fez os pañuelos brancos e verdes conquistarem grandes vitórias – porque juntas nós temos força para fazer muito mais. 

 

Marcela Ciarlini é do Time de Operações e Finanças da Elas no Poder, atualmente trabalha como Analista de Projetos na SEDUC de Rondônia e faz mestrado em Gestão Pública na Universidade de Buenos Aires. É recifense bairrista e praticante de lira circense. 

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