“Minha voz uso pra dizer o que se cala”: o legado de Elza Soares na música e no feminismo

25/02/2022

No dia 20/1 deste ano, o anúncio da morte de Elza Soares impactava não só o mundo da música, mas de todos que acreditavam na potência de uma das maiores figuras femininas brasileiras.

Por muitas vezes, tendo sua história de vida aproximada e confundida com a realidade de milhares de mulheres, a cantora “do planeta fome” marcou gerações com sua presença e voz inconfundíveis. 

Sua origem

Nascida e criada em uma favela na zona Oeste do Rio de Janeiro, onde hoje se localiza a Vila Vintém, a vida da artista foi marcada por inúmeras violências.

Os castigos físicos do pai, seu casamento precoce, a perda dos filhos para fome, eventos de violência doméstica, racismo e machismo, no entanto, não fizeram com que a existência de Elza fosse reduzida apenas às dores que enfrentou. 

Em entrevista ao Roda Viva em 2002, quando perguntada sobre a fonte de sua força para superar as inúmeras dificuldades, a resposta não poderia ser mais grandiosa: Cada porrada que eu levo da vida é como se fosse um beijo”.

Porradas essas que fizeram com que a cantora, quando criança, tivesse uma conversa com São Jorge por meio de uma oração, em um pedido para que cessassem as violências físicas realizadas por seu pai. Segundo Elza, como resposta do santo aos seus pedidos, viria o alerta de que ainda existiriam muitas violências em sua vida. 

Ainda muito jovem, foi forçada pelo pai a se casar aos 12 anos. A justificativa dele era a de que, uma briga envolvendo Elza e, na época, seu futuro companheiro, teria resultado em um estupro, negado pela cantora.

Nas palavras do pai, a honra de sua filha seria apenas retomada com um casamento, o qual deu à cantora o sobrenome “Soares”, utilizado até o fim de sua vida. 

Realidade na vida de Elza e na de milhares de outras crianças e jovens, o país ocupa o 4° lugar em índices absolutos de casamentos infantis.

Considerado como uma prática que atenta contra os direitos humanos, o estabelecimento de uma união antes dos 18 anos afeta principalmente as meninas. As motivações são diversas, mas sempre relacionadas à pobreza e situações de vulnerabilidade. 

As consequências, portanto, foram vivenciadas de maneira traumática na vida da artista: a gravidez precoce e a falta de estrutura econômica levaram Elza, ainda muito jovem, a presenciar a fome e o desespero de perder os filhos para a miséria.

Após a perda de dois filhos, em uma tentativa de salvar a vida de seu primogênito, a cantora deu início a sua carreira em um programa de calouros do Ary Barroso na Rádio Tupi, visando conquistar o prêmio para a compra de remédios.

A entrada de Elza no palco, usando um vestido ajustado com alfinetes devido à sua magreza, gerou risadas da plateia e do próprio apresentador.

Em um país em que, nos dados de 2021, apresentou um levantamento de 116,8 milhões de brasileiros vivendo em situação de insegurança alimentar, Elza escancarava a realidade de milhares de mulheres negras que lutam diariamente pela própria sobrevivência e de suas famílias. 

‘’A mulher sou eu’’: o início de sua carreira

Com a infeliz pergunta “De que planeta você veio?” direcionada à cantora, Ary receberia a resposta de Elza marcada no nome do disco de 2019 “Do mesmo planeta que o seu, seu Ary. Do planeta fome”.

Em poucos minutos de cantoria, Elza impressionou a todos com a sua grandiosidade, terminando a música abraçada ao apresentador e levando o prêmio por unanimidade. 

Tendo a sua potência e genialidade musical atravessada por eventos tão trágicos, Elza descobriu sua capacidade na utilização da técnica de “scat” carregando baldes de água na cabeça.

A técnica, inventada por Louis Armstrong e presente até hoje em composições de jazz, consiste na vocalização de sílabas e sons que não seguem um encadeamento lógico. Ao gemer com o peso dos baldes na cabeça, Elza criava sons a partir da mesma técnica, até então desconhecida por ela, e que mais tarde ouviria na voz de Ella Fitzgerald.

Exemplo de persistência e força, foi eleita como dona da “voz do milênio” pela BBC, e, acumulou prêmios como um Grammy Latino, a presença na lista das maiores 100 vozes da música brasileira elaborada pela Rolling Stone Brasil e o título de “disco do ano”, pelo New York Times.

Além dos títulos, Elza é reconhecida como uma figura consagrada no samba. Convidada pela Salgueiro a puxar o samba enredo “Bahia de Todos os Deuses”, de Manuel Rosa e Bala, foi uma das primeiras mulheres a comandar um carro de som pela avenida, dando à escola seu quarto título.

Estabeleceu grande relação com a Mocidade Independente de Padre Miguel, gravando sucessos como “Rio Zé Pereira”(1973), “Salve a Mocidade” (1974), “Festa do Divino” (1974), “Mãe menininha do Gantois” (1976) dentre tantos outros. Em 2020, foi homenageada pela escola no desfile “Elza Deusa Soares”, fazendo jus ao título de divindade. 

O legado

Grande símbolo da luta contra o machismo e o racismo, a cantora sempre fez questão de se posicionar frente às violências. Um dos seus últimos álbuns, “A mulher do fim do mundo” (2015), a faixa “Maria da Vila Matilde” amplificou o debate sobre violência doméstica.

Assunto de grande dimensão na vida da artista, que, durante seu segundo casamento com o jogador Garrincha, enfrentou diversos episódios de agressão do companheiro.

Encorajando mulheres a denunciarem seus agressores, a voz rouca e firme em versos como “Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim” demonstravam que, até o fim de sua vida, a cantora não abandonaria sua postura e presença de magnitudes inconfundíveis.

Com uma trajetória como essa, nos despedimos apenas da presença física de Elza, com a certeza de que seu legado e o título de “deusa” permanecerão marcados eternamente.

 

Texto de Carolinne Bulgarelli, integra a equipe de comunicação na elaboração da newsletter. Antropóloga, pesquisa na área da segurança pública. Trabalha com educação e programação. 

 

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