As mulheres na arte, narradas por elas mesmas: Erotismo e Agressividade para reclamar a invenção do próprio pecado

Dandara Coêlho

coordenadora da Elas

20/08/2021

Critica-se há muito o único lugar de “protagonismo” permitido às mulheres nas artes: o de musas. Nele, elas eram significadas como pessoas que somente existiam de forma passiva, para serem vistas, olhadas. Constantemente eram retratadas semi ou de fato, nuas, sem que o restante da obra ou do contexto retratado oferecesse respaldo para que o elemento da nudez fosse adicionado. Muitas delas foram agredidas e assediadas física e psicologicamente pelos artistas que lhe cultuavam e com quem se relacionavam ou eram pintadas por.

Pablo Picasso, por exemplo, afirmou que toda vez que trocava de esposa, mulheres-musas-artistas que se relacionaram com ele, gostaria de queimar a ex-companheira que a antecedeu, para que ele estivesse livre dela. Disse que talvez isso inclusive trouxesse um pouco de sua juventude de volta: “Mate a mulher e assim você apaga o passado que ela representa” [tradução livre].

Sob esse manto de “cultuar” ou “celebrar” as mulheres e o feminino, as histórias e narrativas das mulheres foram historicamente reprimidas, roubadas e interpretadas por homens para a apreciação e validação de outros homens.

Como aponta a protagonista Bathsheba Everdene, em Longe deste Insensato Mundo, “é difícil para uma mulher definir seus sentimentos em uma linguagem feita predominantemente pelos homens para expressar os deles” [tradução livre].

Algumas artistas, na contramão desse processo, reclamam a linguagem artística erótica, agressiva, violenta como elementos intrínsecos e essenciais à autodeterminação e manifestação de suas próprias liberdades e valores. Trazemos aqui alguns exemplos dessas artistas.

Artemisia Gentileschi

Artemisia nasceu em 8 de junho de 1593, em Roma. Seu pai, um artista, compartilhava seu ateliê com ela, a qual, aos 17 anos, já era uma potência de pintora. 

Ela não podia frequentar a Academia nem ter modelos nus que posassem para ela, e a autoria de vários de seus trabalhos foi conferida a seu pai e outros artistas homens, mas conseguiu ainda assim desenvolver suas habilidades na pintura barroca, muito inspirada pelo naturalismo de Caravaggio.

Uma de suas obras mais famosas chama-se ”Judite decapitando Holofernes”, a qual alguns críticos acreditam ser uma espécie de vingança visual ou justiça poética contra seu violentador Agostino Tassi, que a abusou aos 17 anos de idade da italiana.

Artemisia Gentileschi, “Judith Slaying Holofernes” (c. 1618–20) óleo sobre tela. Gallerie degli Uffizi, Florença

No quadro acima, a viúva Judite e uma sua serva decapitam o general Holofernes, que a havia assediado. Esta e outras de suas obras contêm elementos não somente muito expressivos e dramáticos (como o alto contraste cromático e de espaços de luz e sombra no quadro – o chiaroscuro desenvolvido durante o Renascentismo), como também elementos que exprimem força, brutalidade, e até sororidade.

Ao se mudar para Florença após o julgamento de seu estuprador (condenado mas cuja sentença jamais foi cumprida) e o seu casamento com Pierantonio Stiattesi, Artemisia começou a ganhar mais destaque como artista e elaborou obras encomendadas inclusive pela Família Médici. Gentileschi foi a primeira mulher a ser admitida na Academia de Belas Artes de Florença, e somente a partir de 1970 foi identificada por movimentos feministas como um de seus símbolos.

Apollonia Saintclair

Apollonia também é uma figura curiosa no universo artístico. Com uma identidade nunca relevada, ela cria ilustrações e histórias em quadrinho eróticas que se situam entre o onírico, o grotesco, o sublime e o humano.

Suas personagens, majoritariamente mulheres, fazem da sexualidade uma manifestação de sua própria liberdade e condição humana. Em várias obras, tentáculos e seres inominados penetram e dão prazer a elas, sempre ponto central dos trabalhos. Em outras, cenas cotidianas são dotadas de um erotismo latente que permite que o leitor confronte-se com sua própria sexualidade e desejos reprimidos.

Please St

Apollonia Saintclair, “Please Stay Inside” (2020), desenho

Em entrevista em 2014, diz ter consciência que seus desenhos podem parecer violentos e são ambíguos sobre quem está no controle da cena que ali se desenrola. Saintclair adiciona que “as mulheres são onipresentes na história da arte, mas muitas vezes elas se limitam à dualidade virgem/ prostituta. O fato de que uma mulher pode sentir desejo – ou mesmo ter uma alma – foi cuidadosamente ignorado.” [tradução livre]

Por meio de sua expressão artística, fortemente erótica, propõe uma natureza artística favorável às mulheres.

Narrar nós mesmas

Françoise Gilot foi casada com Picasso, e ainda é lembrada como aquela que disse “não” e abandonou o famoso pintor. Misógino, extremamente abusivo e violento, Picasso se surpreendeu com a capacidade de seguir em frente que teve uma de suas tantas ex-companheiras após todos os seus esforços para destruir-lhes todas as forças e deixar a elas uma vida miserável.

Conclui-se pela importância de se reclamar a “agressividade” da mulher que resiste e que sobrevive apesar dos esforços misóginos do masculino que somente aceita o feminino na arte enquanto energia passiva que se submete a ele.

Hannah Gadsby, comediante de stand up, afirmou em 2018 que “pela primeira vez na história, mulheres têm controle sobre a escrita e disseminação de suas próprias histórias – de forma não mediada por homens” [tradução livre].

Mulheres artistas-musas, ao trazer para suas obras e vidas elementos eróticos e violentos, que sempre lhes foram proibidos e desafetados, reivindicam sua autodeterminação, isto é, lutam pela posse exclusiva da decisão de definir a si mesma, e de falar por e representar a si mesma.

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