Como a reforma tributária dialoga com pautas de raça e gênero?

Fernanda Paixão

voluntária da Elas

16/09/2023

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) discutida hoje no Senado tem a ver com você, mulher. Depois de 30 anos esquecida no Congresso Nacional, a reforma tributária (PEC 45/2019) vem para dar justiça social à população brasileira, pois as mudanças no sistema tributário interferem diretamente na desigualdade social.

A principal proposta discutida entre os congressistas é a simplificação do pagamento de impostos pela população e pelas empresas. A intenção é substituir cinco dos atuais tributos sobre consumo de bens e serviços (PIS/Confins, IPI, ISS e ICMS) por um único Imposto sobre Valor Agregado (IVA), também chamado de IVA dual. 

O nome deve-se aos dois novos impostos que o compõem, o Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS) e o Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), o primeiro de cunho federal e o segundo, estadual. Assim, a taxa única  deve-se à junção dos eixos estadual e federal, correspondentes aos impostos substituídos. Dessa forma, a distribuição da arrecadação manteria a proporção entre eles durante o repasse. 

Além disso, a reforma tributária vem para resolver outras distorções no enquadramento de produtos causadas pelo sistema tributário atual. Sabe aquele bombom que virou waffle só porque mudou a embalagem? Ou o sorvete, que virou sobremesa láctea – tudo para pagar menos impostos. Pois é, em teoria, as empresas vão passar a pagar pelo produto que de fato comercializam, aumentando a arrecadação.

Mas o que a tributação e a desigualdade  têm a ver com raça e gênero?

Segundo a economista Luzihê Mendes Martins, os temas dialogam entre si. Para ela, a redução da burocracia e a simplificação dos impostos – que retira o pagamento em duplicidade da cadeia produtiva – já atuam para diminuir a desigualdade, uma vez que barateiam os produtos em supermercados, farmácias e demais pontos de venda. Assim, o consumo de itens essenciais pesaria um pouco menos no bolso das famílias mais pobres, sobretudo mulheres e pessoas negras.

Uma pesquisa feita em março de 2023 pelo Instituto Justiça Fiscal constatou que o sistema tributário brasileiro reforça desigualdades de gênero e de classe. Ao analisar as declarações de imposto de renda de 2020, a pesquisa identificou que as mulheres pagam mais tributos em comparação aos homens. 

Famílias chefiadas por mulheres sofrem uma carga tributária indireta de 15,05%, taxa superior à masculina, que é de 14,55%. A tributação indireta é a taxa sobre o consumo, aplicada em todos os produtos e serviços brasileiros. 

Ainda segundo a pesquisa, famílias chefiadas por mulheres são a maioria entre a população pobre, “o que as torna proporcionalmente mais penalizadas pela regressividade tributária”, conclui o documento. Em 2020, as mulheres negras representavam 55,75% das chefes de família, segundo dados do IBGE.

Pesam no orçamento dessas famílias gastos essenciais como alimentação, habitação, vestuário, higiene e cuidados pessoais e assistência à saúde – incluindo remédios. No orçamento masculino, despesas com transporte, impostos e aumento do patrimônio, como aquisição de imóveis e investimentos.

“Levando em consideração que o imposto no Brasil incide no consumo e não na renda, quer dizer que o orçamento familiar recai sobre a responsabilidade da mulher”, afirma a economista. “Com a elevação de preços, a mulher pode perder o poder de compra e acentuar a pobreza. Então, essa discussão é relevante considerando a perspectiva de gênero”, explica.

Imposto rosa

Produtos e serviços direcionados ao público feminino sofrem com o imposto rosa. Ele é uma sobretaxa aplicada somente nos itens direcionados à mulher. Segundo Luzihê, ele é de responsabilidade do Estado por meio da arrecadação do ICMS. É um tipo de imposto indireto, “com a intervenção nos preços dos produtos incidentes no consumo final”.

O exemplo mais comum é o aparelho de barbear, que é mais caro se for nas cores lilás ou rosa ou direcionado à depilação feminina. No entanto, a função do produto para homens e mulheres permanece a mesma. Embora o exemplo mais usado seja um produto comum a ambos os gêneros, a taxa rosa também é aplicada em absorventes, medicamentos voltados para a menstruação e serviços como corte de cabelo.

A economista explica ainda que o imposto rosa “ressalta a relação do marketing e a publicidade com o mercado consumidor das mulheres, estrategicamente estabelecido para suprir os desejos a partir das simbologias e estereótipos”. E apesar de considerar a entrada da mulher no mercado de trabalho, ignora a desigualdade salarial que restringe o orçamento feminino.

“De modo, que a tributação recai sobre os salários, impactando as mulheres no sistema tributário brasileiro”, afirma Luzihê. 

O que está sendo feito para reduzir a desigualdade na reforma tributária?

A reforma tributária pretende contribuir para a redução da desigualdade instituindo a política de devolução de impostos para famílias mais pobres por meio de cashback. Apesar de tê-los como público alvo, a PEC 45/2019 transfere as definições dessa política para depois da sua aprovação, a ser instituída por meio de Lei Complementar.

Durante as discussões sobre essa política em abril, considerou-se a criação do cashback rosa, direcionado às mulheres em geral. Entretanto, a definição dessa política será feita por Lei Complementar, depois da aprovação da PEC no Congresso Nacional. Dessa forma, a proposta não confirma o retorno tributário às mulheres. 

Esta é uma das poucas menções ao imposto rosa na reforma tributária, embora isso já tenha sido pontuado por deputadas federais ainda na Câmara dos Deputados. A proposta alinha-se às propostas feitas pela pesquisa do Instituto Justiça Fiscal para reduzir a desigualdade de gênero e raça. 

Uma delas é desonerar produtos de utilização feminina e consumidos principalmente por mulheres. Outra é aumentar as deduções tributárias entre as famílias monoparentais no imposto de renda.

Ainda assim, a economista Luzihê Mendes Martins elenca pontos a serem considerados sobre o tema antes da criação do cashback rosa. A primeira é a invisibilidade da tributação, “por não apresentar precedentes legais, assim ferindo a constituição, conforme artigo 152 da Constituição de 1988. Então, entende-se encargo tributário por produtores para a precificação, e não delimitado na Lei tributária Nacional”, explica.

As outras duas incidem na participação da mulher na política. “O caminho para fiscalizar a aplicação do imposto rosa está na efetiva participação das mulheres na vida política e nos espaços de discussão, trabalhando para uma transformação cultural”. 

É necessário ainda “discutir a necessidade de planos de Seguridade Social com os encargos sobre a renda da população de acordo com a capacidade contributiva, salientado pela classe da mulher consumidora”, complementa.

Outra ação discutida no Senado Federal é a amplitude da isenção de tributação sobre os alimentos e seus impactos na política de cashback federal. A discussão gira em torno da quantidade de itens isentos, se serão todos os alimentos ou apenas os que irão compor a cesta básica nacional, na qual os itens serão definidos também por lei complementar. 

No momento, questiona-se a alíquota zero sobre todos os alimentos, pois ela afetaria toda a população, beneficiando também famílias com alta renda e mantendo a desigualdade entre as classes.

Para a economista Luzihê Mendes Martins, uma das principais medidas apresentadas na reforma capaz de reduzir a desigualdade é a criação do Fundo de Desenvolvimento Regional, que é motivo de debate no Congresso em relação a quem irá administrá-lo. O Fundo é direcionado aos estados e municípios mais pobres para que eles invistam em projetos regionais a fim de reduzir a desigualdade em relação às regiões mais ricas. 

A economista vê seu uso como meio de “fomentar projetos sociais para atender as mulheres na inserção no mercado de trabalho com ações planejadas de orientação profissional, de desenvolvimento de habilidades, educação ambiental e empreendedorismo feminino”. 

Além disso, “todas essas ações vão contribuir para o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, e empoderando as mulheres para que elas venham a conseguir e não ficar tão sem o poder de compra caso não tenham essas ações de crescimento”, explica.

 

 

Por Fernanda Paixão. Fernanda escreve sobre política, economia, sociedade e empoderamento como jornalista freelancer. É voluntária do Time de Comunicação da #Elasnopoder. É mãe de planta, apaixonada por livros policiais, filmes e séries com uma pitada de crítica social e, é claro, moda.

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